sábado, 3 de março de 2007

सोसिओलोगिया SEGURANÇअ PÚBLICA

REFLEXÕES SOBRE O SABER PENSAR[1]
Juracy Amaral

INTRODUÇÃO

O presente texto pretende contribuir para trazer ao debate algumas reflexões acerca do saber pensar e suas implicações no desenvolvimento dos processos cognitivos. As abordagens que envolvem essa temática têm sido uma preocupação que extrapolam os domínios das disciplinas sócio-hirtóricas e se estendem aos outros campos do saber, focalizados pelas disciplinas da esfera natural. Noutras palavras, o saber pensar se insere na história da humanidade que, em diferentes épocas, procurou esclarecimento para o preceito délfico do conhecer a ti mesmo, pois o homem, lugar do pensamento, nos aparece como uma esfinge – um enigma impossível de ser decifrado. Entretanto, o humano não se conteve diante desse mito, ele procura satisfazer o ideal de uma verdade objetiva, absoluta e universal; não obstante, o único universo que conhece e ao qual se refere é o universo antropológico. Platão refere-se ao passeio de Sócrates com seu discípulo Fedro nos arredores de Atenas, em que Sócrates ao admirar a beleza do lugar, surpreende Fedro, que interrompe o mestre e questiona por que ele estava se comportando como um estrangeiro, acrescenta ainda à pergunta, Fedro: se Sócrates havia ultrapassado alguma vez os muros de Atenas. E o filósofo lhe responde: “Seja indulgente para comigo, meu bom amigo: eu gosto de aprender, tu sabes. No entanto, o campo e as árvores não me ensinam nada, mas os homens da cidade (Domingues, apud Diálogos Fedro, III-IV). Apesar dessa passagem mostrar que Sócrates enfatizou os fatores antropológicos para constituir uma definição do homem, ele não chegou construir uma teoria da natureza humana. A razão para isso é que, segundo Sócrates, os objetos físicos podem ser explicados por suas propriedades objetivas, tidas como a essência acabada da coisa, e como tal, aberta à observação empírica e análise lógica, enquanto que o humano só pode ser definido pela sua consciência. De certa forma, nem uma e nem outra dessas suposições servem para compreender o humano, já que, este mesmo, sendo um ser pronto e acabado, necessita buscar a si mesmo e se faz nessa procura constante ao examinar as condições existenciais sem jamais encontrar repouso”.
Diante desse dilema, torna-se necessário buscar o saber pensar na trama da vida, tecida nas diferentes épocas históricas que emolduram e processam as condições existenciais dos humanos. No atual contexto da alta modernidade
[2], a ciência avançou e produziu, em larga medida, instrumentais que nos capacitam agir na arquitetura da natureza, adulterando-a e adaptando-a conforme nossos ideais. Essa preponderância científica, que marca a era moderna, tem proporcionado ao homem o vislumbrar da possibilidade de satisfazer seu desejo inicial, desvendar o mito da esfinge.
Essas possibilidades de conhecimento se espraiam nos diferentes programas científicos que, em miríades, procuram uma resposta para a indagação inicial – quem somos. Para isso, criam-se, recriam-se instrumentos e adaptam os que já existe para assim, nesse processo instrumental desenfreado, acelerar a interferência humana na natureza. E, os mistérios da mente, progressivamente, são desencantados e submetidos à razão científica que, numa busca infindável, cria e recria procedimentos metodológicos sofisticados e eficientes para tais esclarecimentos. Numa pista, estão os que procuram desvendar as entranhas desse imponderável objeto através do metabolismo químico, físicos e biológicos; noutra, estão àqueles que expandem sua procura para as complexas redes tramadas pelas diferentes disciplinas que, além das naturais englobam àquelas sócio-históricas (da cultura). Estes últimos se propõem conhecer o pensar através de um outro paradigma, o da complexidade. As teorias complexas procuram explicar o processo do pensar a partir dos fatores sócio-históricos e a própria condição ambiental estabelecida por cada ser pensante.
A pretensão desse texto é focalizar os argumentos desenvolvidos pelos que concebem o processo do pensamento a partir do complexo metabolismo neural, noutra vertente, a concepção do mesmo processo a partir da dimensão subjetiva, enfim, mostrar esses enfoques cartesianos e seus limites diante do paradigma da complexidade que concebe o pensamento como um processo inerente à vida, uma constante interação do sistema vivo com o meio ambiente.

Compreendendo o Pensamento
Para Dilthey (2002) a filosofia decompõe e analisa, ela não cria nada, não pode mais do que mostrar aquilo que existe e aquilo que se encontram entre os fatos da consciência, portanto os pontos de referência por meios dos quais a consciência imediata constrói a identidade, o mundo, a divindade e demais representações da vida encontram-se todos na filosofia e esta, por sua vez, não se encarrega de colocá-los em ordem, pois eles já se apresentam ordenados. Assim, a filosofia não constrói, mas encontra de antemão a articulação produzida na nossa própria totalidade. Quando se refere ao pensar, depara-se com um fenômeno que se representa enquanto tal, uma totalidade indivisível que a filosofia pode analisar, mas não poderá decompô-lo ou criá-lo. Existem coisas que se expressam sem que necessitem de serem explicadas, sua própria representação é suficiente para nos contentar. E o pensamento se inclui entre essas coisas.
Saber pensar não se restringe apenas às representações das coisas, é também um processo que se apreende e se pratica reciprocamente (Demo 2000). Assim, podemos abordá-lo para decompô-lo, analisá-lo, criá-lo e recriá-lo. E nesse complexo exercício mental, construir uma teoria explicativa, gerada através da capacidade humana de articular as suas representações abstratas e fantasmagóricas com o real, vivenciado cotidianamente por cada um, conforme a capacidade desenvolvida e a necessidade destes; requer uma análise complexa que não pode ser arquitetada conforme a linearidade dos sistemas fechados, que procuram interpretar a realidade das coisas na sua própria lógica. Como a antropologia limita o conceito do humano à cultura, e o saber pensar está inserido no contexto cultural, podem-se buscar nos processos culturais referências que nos iluminam os caminhos do trajeto que deveremos percorrer para constituir uma explicação do saber pensar. Mas tais argumentos não se esgotam nesse paradigma, pois há outros modelos que lidam com outras variáveis capazes de interferirem no funcionamento do nosso mecanismo cerebral, onde se dá a ocorrência objetiva do pensamento. Essas variáveis emergem com o processo da vida, pois viver requer uma continuidade de ações entre o meio ambiente e o ser vivo, nosso comportamento está imbricado com os estímulos produzidos no meio ambiente em que nos inserimos, disposição essa que, segundo Maturana (2002) nos garante a autogeração e a autoperpetuação da vida.
As ciências naturais se desenvolveram na matriz cartesiana que estabeleceu uma divisão entre o mundo das coisas e o mundo dos sujeitos. Essa matriz, caracterizada por estabelecer uma referência linear para o pensamento, tornou-se, ao longo do tempo, o ponto nodal para a organização do pensamento científico, que se diferenciava dos outros anteriores por estar rigorosamente estabelecido através de um procedimento metodológico pautado pela razão e pela lógica, critérios exclusivos para o estabelecimento de uma verdade suscetível a provas. É nesse panorama histórico das ciências, que a temática envolvendo o enigma humano, colocado pelos gregos, torna-se alvo de muitas ações que tentam elucidar a essência determinante da humanidade, o pensar. Para Foucault (1992), o conceito de homem foi uma invenção do século XVIII, isso porque nesse período, a filosofia se decompôs e originou as ciências que se propunham científicas através dos princípios racionais configurados pela lógica clássica. Mas esse contexto histórico foi antecedido pelo cogito cartesiano, configurador do pensamento ocidental desde então. As influências de Descartes repercutiram em diferentes esferas do conhecimento e tem papel importante no pensamento científico contemporâneo. Essas novas disciplinas acadêmicas, ao se firmarem como autônomas e suficientes para o esclarecimento dos objetos por elas estudados, fez emergir o conceito de humano, concebido conforme o rigor metodológico estabelecido pela ciência, fato inusitado, visto que, até então, não havia uma teoria explicativa do humano e o que havia a esse respeito provinha das indagações fundamentadas pelo pensamento contemplativo e especulativo. A partir dessa nova concepção, o humano se coisificou como problema, portanto deveria ser abordado objetivamente. Nessa direção, as teorias desenvolvidas com o propósito de explicar objetivamente a constituição do metabolismo do pensamento, procuraram abrigo no paradigma fisicalista que se fixava nos princípios configurados pela lógica matemática, em especial a cartesiana. Em datas anteriores, o homem problematizava a natureza, não a si próprio; quando muito, procurava indagar e fazer inferências genéricas acerca de si mesmo para atender aos deleites relacionados com a curiosidade que lhe é peculiar. Eram atitudes desprovidas de cientificidade, não possuíam o caráter racionalista, nem um procedimento metodológico suficiente para atender o rigor estabelecido pelos propósitos da era moderna. Noutras palavras, o humano que se posicionava como agente questionador passou ser questionado pelo próprio homem, mas através dos procedimentos arquitetados pela ciência.
As ciências que procuram uma explicação para a consciência a partir da constituição neurofisiológica do organismo humano têm desenvolvido vários estudos que apontam novos horizontes sobre o pensar e seus metabolismos naturais. Entretanto, há lacunas e problemas que desafiam os pesquisadores, principalmente ao se referir à experiência subjetiva associada aos conhecimentos cognitivos. Isso faz emergir o debate do início do século XX, travado entre os vitalistas e os mecanicistas. Para os primeiros, existe uma força vital, um elemento extrafísico que compõe a natureza viva; enquanto, para os últimos, os fenômenos biológicos são explicáveis pelas leis da física e da química (Capra 2002). Em larga medida, esses embates têm raízes na tradição cartesiana que presenteou o mundo das ciências com o raciocínio estruturado na dicotomia corpo e alma. Tal perspectiva metodológica fez emergir concepções que tomava o mundo das coisas isoladamente do mundo dos indivíduos, estratégia de entendimento que se tornou aceitável nas discussões envolvendo os estudos da consciência. Destarte, a consciência foi inicialmente compreendida através de teorias construídas a partir do paradigma fisicalista, que se propõe problematizar os objetos através da relação causa/efeito. Essa perspectiva de abordagem, de modo geral, procura decompor os objetos em partes conjeturadas como suficientes para esclarecer as proposições acerca do objeto problematizado. Essa ginástica metodológica reduz objetos complexos em objetos simples o que pode de certa forma, comprometer a compreensão do problema enunciado; visto que, na esfera do conhecimento social, a compreensão antecede a explicação (Weber 2003), e essa perspectiva paradigmática admite que a explicação seja suficiente para esgotar todas as incertezas suscitadas nos programas científicos. Abordar a estrutura neural para explicar o self, responsável pela consciência, é uma estratégia análoga ao programa fisicalista, portanto insuficiente para esclarecer o enigma do pensamento. Esse tipo de abordagem metodológica atende aos que procuram seguir a meta positivista. De certa forma, conseguem resultados que contribuem para outras indagações que, conseqüentemente, retornam-se à trama em que se estrutura o pensamento.
Damásio (2000) nos chama atenção para episódios em que há ausência de consciência em indivíduos vitimados por doenças, acidentes ou mesmo naqueles submetidos a anestesias para intervenções cirúrgicas. Seus relatos evidenciam acontecimentos originados na rede neural que comprometem o funcionamento da estrutura psíquica. São casos patológicos que podem contribuir iluminando o caminho para se chegar ao lugar definidor da essência humana, mas não se conclui daí, o repouso do espírito dessa procura, pois outras pistas nos indicam outras possibilidades de entendimento sobre essa essência.

Na acepção psicanalista, o sentido de um fenômeno ou de uma conduta não decorre dos processos psíquico-químicos, fisiológicos ou biológicos, mas da intenção. Assim, pode-se postular sentido onde inicialmente não parecia existir. Nessa direção, Freud iniciou sua investigação acerca da consciência, focalizando no sonho o ponto de partida para se compreender o self. Se o sonho é indecifrável, é porque certo número de representações necessárias à apreensão do sentido está ausente. É como se ao lermos um texto, cujo sentido tentamos inutilmente descobrir, estivesse faltando partes, frases inteiras e palavras que impossibilitassem compreende-lo. O sonho sem sentido é um texto mutilado ou falsificado que lemos, mas não o compreendemos por inteiro ou o compreendemos equivocadamente. Entende-se que quando se fala de presença ou desaparecimento de um determinado objeto, está se referindo à atividade mental consciente, a única capaz de aproximar os dados esparsos para deles se retirar um sentido, portanto, a presença é um indicativo de consciência e a ausência, indicativo de inconsciência. Entretanto, há momentos que o indicativo de inconsciência pode existir temporariamente, nesse caso, a atividade mental consciente não pode abarcá-lo, senão um pequeno número de representações de cada vez, tornando-os acessíveis e disponíveis à atividade consciente a qualquer momento. Esse processo Freud descreveu como pré-consciente, a fim de distinguí-lo de uma outra categoria de elementos excluídos da atividade mental consciente, os quais não podem ser conduzidos para esse plano nem por um esforço de vontade, nem de maneira espontânea. Nessa trilha, a fixação das idéias e o esquecimento passageiro dos nomes que conhecemos bem, revelam conexões associativas com nossas lembranças e impressões penosas que ameaçam ser reavivadas no memento em que o nome é evocado.

É difícil não admitir que somos duas partes distintas, que agem conforme circunstâncias adversas. Mesmo em estado de consciência é possível fluir algum tipo de comportamento que não esteja conscientemente programado. Essa dualidade mente/corpo se constitui numa dinâmica relacional que reflete as formas operacionais do nosso existir. É nessa dinâmica que as interações e relações que nos determinam como humanos aparecem. Maturana (2002) sugere que o domínio da conduta é resultante da dinâmica fisiológica, que origina o organismo como totalidade. A dinâmica da conduta é processada nas interações do organismo que modula a fisiologia que lhe origina. Ao fazer essa distinção, desconstrói-se a concepção dual corpo/alma e nos permite compreender esses dois domínios biológicos a partir dessa dinâmica que se instalou entre eles.



Conclusão


As inesgotáveis discussões epistemológicas acerca dos estudos sobre a constituição do pensamento têm suas razões na própria natureza do objeto estudado. As argumentações emolduradas a partir do paradigma fisicalista indicam que o pensamento emerge no cenário biológico, mas seus fundamentos empobrecem na medida em que se admite simplificar para se chegar à verdade proposta. Ao decompor objetos complexos na suposição de que agindo assim irá encontrar correlações possíveis de serem mensuráveis para atender as proposições formuladas conforme a lógica clássica faz emergir dúvidas difíceis de serem resolvidas nesse paradigma. No plano filosófico e psicológico, o problema do pensamento é discutido subjetivamente. Contrapõe aos que afirmam que a consciência se reduz à ativação dos neurônios ou mesmo do cérebro como um todo, pois não admite que processos físicos, descritíveis quantitativamente, possam produzir experiências qualitativas, que estão no âmbito da subjetividade. Diante desses paradoxos, os procedimentos analíticos que admitem estudar o fenômeno do pensamento a partir da combinação das experiências subjetivas juntamente com os processos neurais correspondentes a essas experiências têm se multiplicado no panorama das ciências da cognição. Admite-se que o pensamento é um fenômeno complexo, produzido num sistema envolvendo elementos abstratos relacionados com o ambiente externo que são as representações imaginárias constituídas dos componentes culturais e sociais e de elementos concretos relacionados com o ambiente interno do sujeito pensante, que é constituído por elementos químicos, físicos e biológicos. A teoria da complexidade admite a consciência como um processo não linear que pode ser estudada a partir da combinação da experiência da neurobiologia, da física, da bioquímica e da biologia do sistema nervoso e da dinâmica não-linear das redes neurais.


BIBLIOGRAFIA
CAPRA, Fritjof. As Conexões Ocultas. São Paulo: Cultrix, 2002
DAMÁSIO, Antônio Os mistérios da Consciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2000
DEMO, Pedro. Metodologia do Conhecimento Científico. São Paulo: Atlas, 2000
___________. Metodologia Científica das Ciências Sociais. São Paulo: Atlas,1989
___________. Saber Pensar. São Paulo: Cortez, 2000
DILTHEY, Wilhelm,
Psicologia e Compreensão. São Paulo: Edições 70, 2002
DOMINGUES, Ivan. O Grau Zero do Conhecimento. São Paulo: Loyiola, 1991
FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1992
FREUD, Sigmund. Obras Completas.Madrid: Biblioteca Nueva, 1973
MATURANA, Humberto. A Ontologia da Realidade. Belo Horizonte:UFMG, 2003
POPER, Karl R. ECCLES, John C. O Cérebro e o Pensamento. Brasília: UnB, 1992
WEBER, Max. Conceitos Básicos de Sociologia. São Paulo: Centauro, 2003

[1] Trabalho apresentado à disciplina de Metodologia do Curso de Doutorado do PPGS da UnB – 2005 com avaliação máximo conferida pelo Prof. Dr Pedro Demo.
[2] Giddens refere à alta modernidade para designar a atual fase do capitalismo, já que o mesmo fundou a modernidade. Portanto, não podemos falar de pós-modernidade, se ainda persiste o capitalismo.

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