sábado, 16 de julho de 2011

sábado, 16 de junho de 2007

A ORGANIZAÇÃO POLICIAL MILITAR DE MINAS GERAIS

Introdução

A Polícia Militar de Minas Gerais - PMMG é a instituição responsável pela ordem pública do Estado। Criada para reprimir as atividades criminosas que emergiam concomitantemente com a urbanização e a economia aurífera das Minas Gerais – fatos que marcaram a história da colonização portuguesa no Brasil – a PMMG, ao longo de seus quase dois séculos e meio de existência, veio construindo sua imagem de corporação militar até se constituir como instituição sólida, cognominada pela comunidade de “patrimônio dos mineiros”।
Os fatores socioculturais, políticos e econômicos determinados pelas inovações tecnológicas alteraram o ritmo da convivência social e impuseram outra dinâmica aos processos organizacionais, até então caracterizados pelas definições rígidas da burocracia configuradora dos procedimentos administrativos no universo organizacional. A preferência pelos modelos flexíveis de organizações tornou-se unânime entre os gestores das grandes empresas – que têm, como principal objetivo, a maximização dos resultados e a minimização dos custos através das técnicas de reengenharia. É através desse amálgama, típico da sociedade contemporânea, cujo escopo é a racionalização produtiva, que vem sendo discutida a necessidade de uma nova concepção organizacional das polícias militares no cenário brasileiro. Para uns, é inevitável a extinção do modelo de organização policial existente: afirmam que o modelo é anacrônico e incompatível com a realidade social do país, que a melhor solução para o problema está na criação de uma nova corporação policial, mais profissional e capaz de refletir na sociedade uma imagem de instituição descomprometida com a corrupção e as práticas profissionais incompatíveis com a democratização que se passa nas sociedades contemporâneas. Para outros, a ineficiência das polícias não está na estrutura organizacional em si, mas num universo relacional de fatores fora da instituição policial, que limitam e impõem condições impróprias de trabalho (equipamentos e rigidez administrativa). Os adeptos desse postulado entendem que as reformas de caráter administrativo, junto com o reaparelhamento e o treinamento do contingente policial seriam suficientes para obter os resultados desejados. Dispensam a necessidade de se criar uma nova estrutura organizacional, mas indicam ser necessário mudar a forma de atuação do policial junto à comunidade para que a corporação policial tenha uma imagem positiva junto a esta. Aliás, esse é outro aspecto que tem impulsionado as demandas por reformas na instituição policial: do desgaste e estigmatização junto à sociedade. Nesse sentido, propõem que a ação da polícia seja compartilhada pela própria sociedade, tornando mais eficiente e democrática a atividade policial.
O novo cenário social inscrito na sociedade brasileira, o desgaste e anacronismo institucional das polícias, juntos, instalaram um quadro de conflitos sociais e práticas de atos violentos que inviabilizam os projetos de uma sociedade que se propõe perene e adequada para se viver. O problema da segurança pública está preocupando todos os segmentos sociais que buscam a melhor adequação das forças policiais aos fins para os quais foram criadas. Isso exige a reconstrução do modelo institucional das polícias, tornando-as mais ágeis e eficientes no exercício das atividades que lhes são atribuídas. Essa reconstrução não se circunscreve aos equipamentos para o exercício das atividades repressivas, mas também a um pensamento que reconstrua o saber para entender com mais profundidade a dinâmica que engendra esse tipo de instituição, cujas relações sociais de trabalho e objeto de trabalho são sui generis, o que não deixa de demandar um estudo mais profundo.
Sobre o conhecimento da instituição policial
Se olharmos de perto toda literatura que se ocupa em discutir a atividade policial e procurarmos saber, com mais profundidade, o que define a estrutura desse tipo de organização; como se processam as relações internas, de poder, de afeto, de amizade; como o policial se autodenomina quanto ao exercício da profissão, quanto ao reconhecimento público do que faz, quanto à realização pessoal e ao status da função que exerce; se sua satisfação profissional supera o medo e o risco inerente ao tipo de trabalho; enfim, como são configurados os corpos que operam a organização policial militar, não será nenhuma surpresa encontrarmos uma acanhada produção científica sobre o tema. Uma parte significativa dos pesquisadores interessados pelo assunto tem se preocupado com a repercussão dos efeitos das ações policiais no meio social. São parcas as indagações sobre os processos geradores e reprodutores dos fatores socioculturais que caracterizam a atividade desse tipo de organização e que representação a imagem dessas instituições tem para o seu público interno e externo numa dada sociedade. Uma das razões do mal-estar existente entre a polícia e o público é que a polícia é uma das organizações mais desconhecidas neste país (PAIXÃO e BEATO, 1997).
Existem poucas publicações sobre a organização policial militar de Minas Gerais nas bibliotecas de Belo Horizonte. Nos acervos das universidades, podem ser encontrados alguns volumes de pesquisas sobre violência policial e alguns dados históricos sobre a polícia. No Acervo Público Mineiro, existem documentos históricos sobre a evolução da polícia no Estado. Na Academia de Polícia Militar, existe uma livraria – obviamente especializada no assunto – cujo estoque, salvo um ou dois exemplares, se restringe a produções do efetivo. São artigos avulsos, monografias e uma revista periódica (O Alferes), que abordam os diversos problemas do cotidiano policial. Na Fundação João Pinheiro e na Universidade Federal de Minas Gerais, concentra-se a maior parte dos trabalhos e pesquisas sobre criminalidade e violência policial, bem como propostas sobre a reformulação da polícia.
É notável a ausência desse tipo de conhecimento nas academias brasileiras: salvo algumas exceções, os pesquisadores têm privilegiado as questões inerentes à prática da violência policial. Pouco se produziu sobre as questões intrínsecas à cultura organizacional e aos processos psicossociais que engendram o trabalho policial. O conhecimento das entranhas da PMMG manteve-se, por muito tempo, restrito aos partícipes da corporação, e ainda hoje há resquícios desse enclausuramento cultural estampado nas práticas militares, quando procuram estipular condições de diferenciação entre o paisano e o militar. Faz parte da tradição cultural dos policiais militares ver o paisano com suspeição, e a recíproca é verdadeira, contribuindo para dificultar, ainda mais, o relacionamento das polícias com as pessoas comuns. Por outro lado, as notícias divulgadas pelas mídias, sobre as atividades policiais, têm produzido efeitos ruinosos à imagem da instituição policial junto à sociedade, despertando nos cidadãos o sentimento de repulsa pelo trabalho da polícia.
O treinamento dos policiais militares em Minas tem sido um dos principais pontos de investimento da corporação nos últimos anos, mas ainda apresenta certo grau de deficiência, principalmente quanto àquele destinado aos praças. Mas o nível de especialização dos oficiais da PMMG é elevado: no alto comando, predominam os oficiais pós-graduados. Todos trabalham em suas respectivas áreas de especialização – tecnologias da informação, finanças, administração, ciências sociais, marketing etc. As pesquisas de opinião pública divulgadas pelas mídias vêm indicando um alto grau de rejeição da polícia pela sociedade; grande parte da população se sente insegura com a presença policial. Essa imagem negativa das polícias em todo o país tem preocupado as autoridades responsáveis por essas instituições. Em Belo Horizonte, estão sendo implementados projetos que buscam recobrar a credibilidade da Polícia Militar. Estudos realizados pela Universidade Federal de Minas Gerais e Fundação João Pinheiro, em conjunto com a Polícia Militar, vêm procurando caminhos que possibilitem aproximar a polícia da comunidade e estabelecer relações para melhorar o trabalho de combate à criminalidade.
O problema da criminalidade é complexo. Seus efeitos demandam estudos com amplo espectro de informações, o que implica uma maior abrangência de esferas de conhecimentos envolvendo o tema. Se abordarmos o tema através de uma perspectiva ampla, iremos perceber que a responsabilidade policial tem limites e que é necessário o envolvimento de outros setores da sociedade nas agendas de discussões sobre o problema. O aumento assustador da criminalidade abriu um leque de discussões e atraiu diversos cientistas sociais que se propõem a conhecer o problema para implementar as políticas de combate à criminalidade. Descortinou-se um elenco de indagações sobre qual seria o papel das polícias e o limite de responsabilidade e de competência policial no combate ao crime.
A imagem da polícia tem sido estigmatizada nos veículos de comunicação, que disseminam diversas informações para o público sem se preocupar com os seus efeitos no imaginário coletivo. Atribuem-se às policias qualidades e funções que ultrapassam as reais atribuições para as quais foram concebidas. A função da polícia é representada nas mídias de forma equivocada: de um lado, coloca o policial no papel de demiurgo, capaz de solucionar as históricas relações conflituosas do homem; de outro, faz do policial o ser mais cruel. Os enredos cinematográficos refletem a atividade policial através da lógica cruel, cuja repercussão no meio social fortalece os preconceitos e a incompreensão do verdadeiro papel que fundamenta os princípios da função policial.
A cobertura midiática sobre as questões vinculadas à segurança pública é uma constante jornalística. Diariamente, são noticiados diversos fatos sobre a violência. O medo é difuso em toda a sociedade; não se sabe o que temer: apenas se sente medo. Os fatos que nos causam medo se desenvolveram ao longo da história, migraram da fantasmagoria para a vida real, materializaram-se, e são difundidos pelas empresas de notícias. Já não se teme apenas aquilo que indica a iminência aterradora; o medo não se restringe às ocorrências que nos ameaçam no cotidiano da nossa rua, bairro ou cidade. Causam-nos medo todas as práticas sociais que impinjam noutro indivíduo um sofrimento qualquer, não importando quem esteja sofrendo e onde ele se encontre. Por mais longínquo que ele esteja, ainda assim tememos que a causa do sofrimento dele também possa desencadear, em nós, idêntico sofrimento que passa no outro distante – é o sofrimento à distância, a que se refere Boltansky (1990). O que nos causa medo universalizou-se. A distância foi encurtada pelos avanços tecnológicos e sentimos medo daquilo que dista da nossa realidade diária, que não aparenta perigo iminente como ocorre com os acontecimentos que nos ameaçam, que nos amedrontam por se encontrarem realmente próximos de nós. O espetáculo produzido pelas mídias, através da vulgarização dos episódios de conteúdos aterrorizadores, pode ser visto como estratégias que visam despertar nas pessoas um sentimento de ânimo diante de sua miserabilidade a do sofrimento do outro.
A inserção da imagem da instituição policial no cenário brasileiro passa, necessariamente, pela reformulação dos valores culturais enraizados na convivência social dos policiais. Os vícios e os privilégios, negados pela racionalidade burocrática (WEBER, 1982), minam as virtudes atribuídas à organização da Polícia Militar de Minas Gerais. As mudanças reivindicadas pela sociedade têm repercutido nos quartéis e rompido com o isolamento até então existente na corporação policial militar.
Recuperar o verdadeiro sentido do conceito polícia torna-se importante para delinear as evoluções históricas que deram origem ao atual estágio organizativo em que se encontram as diversas modalidades policiais. O nome polícia tem servido para designar uma profusão de organizações com diversas finalidades, que, muitas vezes, não correspondem ao que historicamente se propusera com as primeiras organizações policiais criadas no mundo ocidental. A incumbência de garantir a ordem legal, manter a conduta de acordo com os preceitos morais vigentes na sociedade e reprimir os crimes constituem os principais objetivos determinantes da necessidade da instituição policial. Desviar desses objetivos significa a desconstrução do conceito de polícia. Essa condição de existência da polícia lhe exige amplos recursos para efetivar aquilo para o qual foi constituída. A questão é saber como a instituição policial pode engendrar um novo modelo que satisfaça as reivindicações da sociedade e dos próprios agentes policiais.
Hannah Arendt afirma que a geração de poder necessita da convivência entre os homens; portanto, as cidades foram a condição material mais importante na constituição do poder (ARENDT, 1993). A força, por sua vez, ainda segundo Arendt, distingue-se do poder, por ser esta uma condição expressa na individualidade, na condição física de cada um; o poder, ao contrário, está vinculado à ação produzida pelos indivíduos no convívio social. A eficiência policial depende de muitos fatores que, articulados coerentemente, cumprem os objetivos coercitivos que lhe são atribuídos. Entre esses fatores, destacam-se a capacitação profissional e a legitimidade como fundamentais na estruturação da instituição policial. A legitimidade de poder determina à instituição sua aceitação pública e a sua capacitação traz ao público a confiança necessária para respeitá-la. Se concebermos que é na convivência social que se origina o poder, o relacionamento da instituição policial com a sociedade deve, portanto, ser suficiente para o fortalecimento das atribuições dessa instituição. .
A emergência do ofício policial
A polícia é um órgão do poder público que tem como objetivo específico resguardar a ordem social, a ordem pública e política de uma dada sociedade. A função policial é análoga à função dos agentes de saúde pública. Explicando: o agente de saúde pública combate as doenças que acometem a sociedade e toma medidas profiláticas visando a saúde para todos os cidadãos; a polícia combate as ações criminosas que acometem a sociedade e toma medidas preventivas visando a tranqüilidade de todos os cidadãos. Além disso, o trabalho da polícia protege o patrimônio público e particular, previne contra a violação das leis penais, fiscaliza a moralidade dos costumes e auxilia a Justiça na manutenção da incolumidade pública. A polícia pode ser ostensiva ou preventiva. É ostensiva quando faz notar sua presença; preventiva, quando usa estratégias para evitar ocorrências criminosas.
A polícia pode ser classificada de acordo com o exercício de sua atividade. Denomina-se polícia administrativa ou preventiva aquela em que a atividade se restringe à vigilância para preservar e garantir a ordem e a tranqüilidade pública; para impor os bons costumes; para preservar a moral coletiva; para impedir a desobediência às leis; para fiscalizar o trânsito, as casas de espetáculos e diversões; para inspecionar as aglomerações de pessoas e assegurar o cumprimento dos atos da administração pública. Denomina-se polícia judiciária, repressiva ou civil, aquela que exerce atividades auxiliares da Justiça: investiga e descobre infrações da norma penal, diligência para capturar os seus autores e reúne provas contra eles em inquéritos regulares, depois entregues à justiça punitiva com base no procedimento criminal.
Para Freud (1973), a liberdade individual não é um bem da cultura; antes dela a liberdade era máxima, porém, cada indivíduo ficava restrito às suas limitadas condições para a autodefesa. O "processo civilizador" impôs aos indivíduos restrições comportamentais regulados pela Justiça. O maior problema da humanidade é encontrar o equilíbrio entre a procura incessante de liberdade individual, e a proibição contida nas regras culturais que impedem o homem de manifestar sua plena liberdade em busca da felicidade condicionada pelos desejos instintivos. Essa característica da cultura de regular as relações sociais dos homens no vasto espectro em que elas acontecem, desde aquelas estabelecidas entre as pessoas muito próximas em razão de interesses afetivos, sexuais, comerciais, etc., até aquelas mais longínquas – como as que envolvem o Estado, empresas etc. – evitam que o arbítrio individual decida os conflitos existentes nessas relações, prevalecendo o mais forte.
Para a necessidade de que exista uma potência que regulamentasse o convívio social dos indivíduos convergem muitos pensadores que se ocupam dos problemas relacionados com a criminalidade. Para muitos, a possibilidade da convivência humana está intimamente ligada à capacidade coercitiva de cada sociedade, que se expressa numa potência legitimada para regular os processos da trama social. Dessa forma, limita-se a manifestação da força individual e impede-se a manifestação da individualidade e da agressividade humana, preservando-se, portanto, os interesses coletivos. Esse mecanismo de substituição do individual pelo social constitui-se no amálgama que originou a cultura, que deu ao homem sua condição humana. De outra forma, as regras proibitivas são necessárias, mas só podem superar a força bruta do homem quando convergidas para as razões contidas no direito que se constitui para preservar a unidade e a coesão social.
Nas sociedades complexas, em especial aquelas cujos valores seguem os padrões da cultura ocidental, as instituições desempenham um papel importante na trama das relações sociais. São notáveis as influências das normas institucionais no comportamento das pessoas, pois que padronizam o status social de cada indivíduo através de uma educação regular e rotineira. De um lado, a família constrói as estruturas básicas do ser social através de regras informais, praticadas de acordo com cada meio social em que se vive. Do outro, a escola, através do conhecimento formal instituído de acordo com cada época e necessidade do sistema produtivo, produz e reproduz o ser social. Ainda temos os preceitos religiosos que exercem seu papel unificador das crenças dos indivíduos. Assim o Estado e as demais instituições existentes na sociedade constituem os instrumentos produtores e reprodutores dos sistemas sociais. Essas instituições preparam os novos componentes da sociedade para capacitá-los à reprodução desses valores ao longo da história. O convívio duradouro e harmonioso, aprovado segundo os critérios de cada cultura, dependerá do sucesso da assimilação desses valores pelas gerações seguintes.
Se o primeiro pressuposto de toda existência humana é a sua condição de poder viver, a história dos homens está, assim, condicionada ao fato de serem estes obrigados a produzir, de um determinado modo, a sua própria vida de acordo com suas limitações físicas. Nessa perspectiva, os homens constroem os instrumentos coercitivos compatíveis com cada realidade. Fica a pergunta: a polícia atende hoje a essas necessidades?
Deleuze (1990) afirma que todo estilo novo implica num encadeamento de posturas, isto é, um equivalente de sintaxe, que se faz com base num estilo precedente em ruptura com ele. As melhorias técnicas só têm efeito se tomadas e selecionadas num novo estilo, que elas não bastam para determinar. Penso nos modelos organizacionais existentes na nossa sociedade, que carecem de um novo estilo. O problema é como fazer essa mudança. Em analogia ao que diz Deleuze, afirmo que a estrutura organizacional da polícia carece de um novo estilo, que deverá ser introduzido através de um encadeamento de posturas administrativas e normativas como numa sintaxe.
Foucault (1984) observa que as sociedades modificaram as formas de reprimir os diversos tipos de crimes: aboliram o suplício, concebido como espetáculo público de coerção; aperfeiçoaram as leis penais, adaptando-as às novas realidades socioculturais; deslocaram o sofrimento corpóreo imputado ao infrator para o sofrimento mental (ou seja, nesse tipo de sofrimento já não é mais a carne o ponto melindroso capaz de causar a resignação dos condenados, mas a mente). É através de um certo olhar, da ordenação específica sem atingir diretamente o corpo que se obtém a obediência, o arrependimento e o comprometimento de não mais infringir as normas sociais que convencionam as condições mínimas da convivência social. Continua Foucault (1984) também ressalta que: nos séculos XVIII, XIX e XX – no início deste último, foi mais evidente a situação disciplinar – os indivíduos eram confinados nas diversas instituições existentes na sociedade (família, escola, hospital, fábrica, caserna e o próprio confinamento, a prisão). Cada instituição se incumbiu de controlar os movimentos, concentrar os indivíduos, ordená-los no tempo e no espaço para que cada um pudesse se ajustar às conveniências sociais; e, através desse conjunto sincronizado – corpo e mente obediente – submetê-los aos comandos regimentais. O objetivo era obter uma obediência incondicional, sem qualquer possibilidade da ordem emitida pelo dominante ser questionada pelo sujeito ou sujeitos alvos do controle. A legitimidade da ordem não seria obtida através dos processos conscientes. Ele destaca ainda que as ciências produziram, por meio do conhecimento humano, as vias indispensáveis para efetivar esse domínio. Alteraram-se os desejos e as necessidades humanas, pontos vulneráveis ao controle.
Ao constituir os aparatos repressivos, o Estado criou as forças policiais para estabelecer a ordem nos conflitos de interesses sociais e garantir certo conforto no imaginário coletivo, de modo a amenizar o mal-estar social. Nessa perspectiva, a polícia, enquanto força repressiva para garantir a estabilidade em sociedades caracterizadas por desigualdades sociais tinha o papel eminentemente de repressão às categorias sociais que se sublevaram contra os interesses dominantes.
Panorama histórico
Desde a chegada dos portugueses nas terras brasileiras até os nossos dias, as qualidades paradisíacas do país têm sido motivo para atrair povos de todos os cantos do mundo, na esperança de encontrarem, nas terras tropicais, o paraíso perdido, onde melhor possam viver. A história registra diversos elogios feitos pelos viajantes quinhentistas, ficando o destaque para Pero Vaz de Caminha, que, em sua missiva dirigida à coroa portuguesa, relatava os encantos da nova terra. Outra carta elogiosa ao Novo Mundo foi a de Américo Vespúcio, dirigida a Francisco de Médici. Outro entusiasmado com a terra brasileira foi Gandavo, que afirmava ser a província de Santa Cruz a melhor para a vida do homem por ser de bons ares e de terras fertilíssimas. Assim prosseguem outros cronistas, noutras épocas; cada um à sua maneira, tecendo o discurso laudativo sobre a complacência da natureza em criar lugares tão belos e generosos à vida como os do novo país.
Essa visão encantada dos viajantes sobre a dádiva da natureza para com as terras brasileiras seduziu não somente os portugueses que colonizaram o país, mas ainda outros povos da Europa. Foi da cultura européia que se originou a sociedade brasileira, cujas características de convívio social, de instituições e idéias ainda preservam os resquícios culturais do velho continente.
Diversos autores afirmam que se a sociedade brasileira concede privilégios em excesso, isso se deve em larga medida aos povos ibéricos, que antes já haviam desenvolvido o mesmo tipo de costume. Nesses países, o valor dos homens não poderia sofrer inferência dos demais; cada qual era produto de suas virtudes e de seus esforços Holanda, (1998) ressalta o personalismo como herança cultural ibérica que se espalhou por todas as organizações que iriam consolidar a ordem pública. A não presença de uma hierarquia organizada na sociedade brasileira, segundo o autor, abriu espaço para proliferarem os elementos anárquicos. E para conter esses ânimos anárquicos, o governo não se preocupou em unir os homens; ao contrário, recorreu aos mecanismos capazes de separá-los. Assim, Holanda lembra que os decretos e a imposição de normas rígidas e repressivas, como recursos para inibir as paixões dos indivíduos, tornaram-se práticas costumeiras dos governantes brasileiros. Por outro lado, para efetivar esses recursos governamentais de controle social, foi necessário recorrer à formação de um aparato miliciano, recrutado entre a população da colônia, para conter bandoleiros e rebeldes através do uso exagerado da força física. Desconheceu-se, porém, a capacidade astuciosa dos indivíduos para criar e sofisticar meios de burlar todas as formas de repressão provindas do governo.
É nesse contexto que se delineia a história das polícias brasileiras, iniciada em 1548, no primeiro governo de Tomé de Souza, quando se criou a primeira força armada regulamentada através do princípio militar. Com um contingente de 600 homens, armas bélicas e regulamento do rei de Portugal, constitui-se a primeira lei orgânica da força armada do Brasil. Alguns anos mais tarde, precisamente em 1570, completou-se esse regulamento com a obrigatoriedade do serviço militar, com o principal objetivo de se fazer a defesa comum.
Assim, constitui-se a primeira organização militar brasileira, denominada Ordenanças, criada para garantir a segurança do território nacional. Seu contingente – excetuando-se os que pertenciam ao clero e os funcionários reais – era recrutado entre toda a população colonial masculina, que permanecia em suas atividades particulares indefinidamente até quando houvesse necessidade de fazer a defesa do território nacional. Só então esses homens tomavam seus postos na organização, armavam-se por conta própria e, em ação de guerra, recebiam o soldo; caso contrário, permaneciam no exercício de suas atividades da vida privada sem nenhuma remuneração.
Mais tarde, vieram as milícias, com um grau de organização maior que as Ordenanças, que recrutavam seu contingente de forma mais criteriosa e adotavam alguns princípios de interesse do governo português – ou seja, os cargos superiores do comando só poderiam ser ocupados por pessoas de nacionalidade portuguesa, enquanto os demais cargos poderiam ser ocupados por brasileiros. Assim como nas Ordenanças, também os milicianos não recebiam remuneração fixa, mas somente nos períodos em que exerciam a atividade miliciana. Nesse estágio de evolução da organização militar, já havia certa preocupação em se treinar o contingente: periodicamente, esses homens deixavam suas atividades civis para se dedicarem à aprendizagem do ofício militar.
Para garantir os interesses econômicos do governo português e manter a exploração da colônia sob controle, era necessário que a Coroa agisse com determinação para conter os ímpetos daqueles que pretendessem desobedecer ou tentar qualquer tipo de insubordinação das ordens vindas do rei.
Os portugueses davam primazia à vida rural, cuidando de explorar os bens naturais sem se preocuparem com as feitorias; queriam uma riqueza fácil e, se possível, ao alcance da mão. Mas, aos poucos, as riquezas fáceis, em abundância no início da colonização, foram se escasseando, o que obrigou os aventureiros a providenciar outros meios que lhes possibilitassem continuar se apropriando das riquezas da colônia, sem a necessidade de acometer ao trabalho com muitos esforços para alcançarem os objetivos da exploração.
Juntamente com o Ciclo do Ouro, iniciou-se a expansão urbana, que, na trilha da exploração, produziu uma sociedade urbana caracterizada pela astúcia de conseguir o enriquecimento através da ética aventureira, (HOLANDA, 1998). Essas características sociais, definidas a partir do tipo de caráter que compunha o cidadão que ia proliferando nas cidades, nos indicam que os conflitos sociais e todas as modalidades de trapaças iriam emergir, tornando difícil a convivência urbana, sem que houvesse uma força capaz de conter tais conflitos.
A mineração do ouro de aluvião
[1], como é conhecida, despertou a cobiça de multidões que, aos poucos, se fixavam nas terras próximas de onde se extraía o precioso metal. Nas terras de maior concentração do metal, elevavam-se as primeiras casas que iriam compor o futuro cenário urbano das Minas Gerais – cenário que ficou caracterizado pela exuberância do ouro empregado nas construções das igrejas e pelas casas luxuosas, para a época, denunciando que havia riqueza naquele lugar. Assim, nasceram as primeiras cidades históricas de Minas Gerais[2].
A aglomeração, muito rápida, de pessoas nos povoados e nas vilas que estavam surgindo trouxe os diversos problemas que caracterizam esse tipo de urbanização. A população que se aglutinava para formar os povoados e as vilas se caracterizava por um espírito predominantemente predatório. Eram pessoas que procuravam o enriquecimento rápido a qualquer custo, sem se preocuparem com as conseqüências dos seus atos. A lógica que predominava era a do oportunismo, do menor esforço e maior lucro; tudo deveria ser feito para aproveitar o máximo possível das situações favoráveis ao enriquecimento sem um mínimo de esforço. Talvez seja esse o principal traço que caracterizou a colonização portuguesa por onde ela esteve: buscar a riqueza através da ousadia e não à custa do trabalho (HOLANDA, 1998). Eram pessoas de princípios éticos baseados na lógica da ousadia, no descomprometimento com as coisas públicas, mas com elevado interesse de enriquecimento à custa de nenhum esforço (HOLANDA, 1998), que iriam desenvolver as cidades e produzir o surto populacional que interromperia a melancolia do ambiente da colônia para originar a sociedade urbana, constituída de pessoas cujo caráter não comportava atitudes que exigiam lealdade ou comprometimento duradouro com o lugar onde viviam. Predominava o caráter da economia fundamentada no garimpo do ouro, que, por sua natureza, era permeada por diversas modalidades de crimes e práticas sociais desprovidas de qualquer preceito moral. Desenvolveu-se o processo de urbanização nas Minas Gerais. Dessa forma, iniciou-se a trama social que iria produzir diversos inconvenientes ao governo português.
O domínio português no Brasil foi morrinhento. Da descoberta da nova terra até quase duzentos anos depois, a atitude política da coroa portuguesa para conter os invasores que despojavam as riquezas brasileiras foi de uma lassitude deplorável. Todos os tipos de rapinagem eram praticados nas terras brasileiras, e a metrópole, desalentada, nada fazia para impedir a evasão das riquezas naturais, que, além de abundantes, eram achadas na natureza; não se necessitava de trabalho ou muito esforço para delas se apropriar. Mas essa lassitude portuguesa foi interrompida quando se iniciou o período aurífero em Minas. Ao perceber que a abundância de ouro atrairia pessoas cobiçadas pelas riquezas fáceis, o governo da metrópole resolveu agir de forma enérgica para se precaver dos malfeitores que se aglutinavam nas redondezas onde se minerava. Dessa forma, garantiria os negócios do empreendimento além-mar.
Essa atitude intervencionista, de caráter autoritário, impediria edificar uma nação a partir dos princípios da cidadania. As medidas do governo para manutenção da ordem social tinham como escopo garantir o máximo da exploração econômica, independentemente de estar ou não desrespeitando os direitos individuais. A repressão policial tornou-se o mecanismo preferido pela Coroa para consolidar seu poder na colônia. Isso pode ser verificado no fato denominado Demarcação de Diamantina, que, em 1771, impunha limites territoriais para submeter a população civil à exploração. Essa lei obrigava todos os moradores a exibir provas de idoneidade e de identidade suficientemente capazes de satisfazer a autoridade local, todas as vezes que necessitassem se deslocar dentro da região demarcada; do contrário, estavam sujeitos ao degredo em Angola. Esse tipo de exagero é o mesmo que criar um Estado dentro de outro Estado.
A partir de 09 de novembro de 1709
[3], São Paulo e Minas Gerais[4] separaram-se do Rio de Janeiro para formar uma única capitania, primeiramente governada por Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho. Nesse período, a organização militar brasileira ainda era incipiente[5]; mas as conseqüências sociais advindas da descoberta e da exploração aurífera em Minas obrigaram o governo a criar a Tropa de Linha que, em princípio, recrutava seu contingente em Portugal para constituir uma Força Regular e Paga à serviço da metrópole. D. Antônio de Noronha, em 1775, ampliou os quadros dessa organização militar, constituindo, assim, o regimento de cavalaria regular, que passou a denominar-se Tropa Paga da Capitania.
Com o desdobramento socioeconômico ocorrido na Capitania de Minas, D. João V organizou e enviou para a colônia uma tropa de Dragões
[6], composta de duas companhias, para que pudesse apaziguar os levantes verificados em Minas em função da arrecadação de impostos[7] do ouro que eram sonegados à Coroa. No final de 1719, esse contingente de Dragões já se encontrava agindo em Minas. Temendo o descontrole sobre a sublevação, tratou-se de enviar mais reforços militares para conter os rebeldes que proliferavam em Minas. Em 1729, chegou à colônia a terceira companhia para compor as duas outras anteriores que já estavam em ação.
O processo de colonização portuguesa no Brasil foi constituído por elementos da improvisação: não se alicerçou uma cultura que atribuísse importância à permanência das coisas; ao contrário, o imaginário predominante foi aquele que fortalecia os costumes do provisório, do fazer e desfazer como prática corriqueira dos governantes e instituições dos diversos tipos. Ficou evidente essa peculiaridade do imaginário do colonizador português no episódio sobre a chegada da terceira Companhia de Dragões em Minas, em 1729. A improvisação foi tanta que não havia abrigo para toda a tropa; como não havia quartel, foram obrigados a dividir os soldados em grupos de até cinco para serem alojados nas residências particulares das famílias de Vila Rica.
Os soldados portugueses não se adaptaram à realidade da colônia. As condições climáticas, o desconforto no trabalho e as ligações afetivas na metrópole fizeram dos Dragões uma tropa ineficiente, incapaz de cumprir com as incumbências que lhe foram atribuídas. A conseqüência disso foi a dissolução dessas três companhias em 1775. Para substituí-las, D. José I autorizou o governador D. Antônio de Noronha a criar, em 09 de junho de 1775, o Regimento Regular de Cavalaria de Minas. Nesses percalços, iniciou-se a profissionalização, ou melhor dizendo, uma função remunerada cujo ocupante não teria necessidade de exercer outras atividades para se sustentar. O pagamento dessa tropa, integrada por soldados mineiros, ficou sob a responsabilidade do governador da Capitania de Minas, na época, o próprio D. Antônio de Noronha. A partir de então, foi criada a Polícia Militar do Estado de Minas Gerais, cujas atribuições eram de natureza militar e policial.
Quanto à atribuição militar, era de sua responsabilidade atuar em combates para resguardar a unidade nacional. Assim, por várias vezes ajudou em combates noutras regiões fora de Minas. Como atribuição policial, tinha por objetivo impedir o contrabando do ouro extraído em Minas e fazer a escolta do seu transporte para o Rio de Janeiro e outras regiões; também, em menor importância, resguardava a ordem social da Capitania de Minas.
No período da Regência Trina, de muitas turbulências sociais, o Governo Regencial, para sustentar a situação política, percebeu ser necessário criar um corpo policial para atemorizar os revoltosos e, ao mesmo tempo, proteger os cidadãos. Ficou na incumbência de organizá-lo o major Luiz Alves de Lima e Silva, mais tarde Duque de Caxias. De acordo com a Carta-Lei de 10 de outubro de 1831, criou-se, no Rio de Janeiro, o Corpo de Guardas Municipais Permanentes. Em 12 de dezembro do mesmo ano, foi criado o Corpo de Guardas Permanentes de Minas.
Na 17ª sessão extraordinária do Conselho da Província de Minas, em 12 de dezembro de 1831, ficou resolvida a criação do Corpo de Guarda Permanente de Minas, conforme se segue:
“Prosseguindo-se em novas amplas reflexões, a respeito da Organização das Guardas Municipais Voluntárias, e do emprego que deverão ter na capital e nas mais Povoações da província, resolveu-se pela creação de um Corpo de Quatrocentas, dezoito pessoas, em quatro Companhias de noventa soldados, com os respectivos Officiaes e Officiaes inferiores, conforme o Plano adoptado na Côrte, pelo Decreto de 22 de outubro deste anno, sendo todo de pé, visto que já na Província existe o outro Corpo de Cavalaria de 1ª linha, que tem de empregar-se – simultaneamente” (ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO – CÓDICE 86).
Assim, inicia-se a Polícia Militar de Minas Gerais, marcada por dois momentos de importância política: o primeiro, relacionado com a criação da Guarda Nacional em 18 de agosto de 1831 – guarda que atuou na Guerra do Paraguai e se caracterizava como força, diferentemente de um exército regular propriamente – e o segundo, relacionado com a criação dos Corpos de Guardas Municipais Permanentes em 12 de dezembro de 1831, em Minas, conforme se lê a seguir:
“A Regência, em nome do imperador o Senhor Dom Pedro II, faz saber a todos os súditos do Império que a Assembléia Geral decretou, e ela sancionou a lei seguinte”:
Art.1º - O governo fica autorizado a criar nesta cidade um Corpo de Guardas Municipais Voluntários a pé, e a cavalo, para manter a tranqüilidade pública, e auxiliar a justiça, com vencimentos estipulados...
Art.2º - Ficam igualmente autorizados os presidentes do Conselho para criarem iguais Corpos, quando assim julguem necessários, marcando o número de Praças proporcionado.
Art. 3º - A organização do corpo, pagamento de cada indivíduo, a nomeação e a despedida dos Comandantes, as instruções necessárias para a boa disciplina serão feitas provisoriamente pelo Governo, que dará contas na futura sessão para aprovação da Assembléia Geral.
Art.4º - Ficam revogadas todas as Leis em contrário.
Manda, portanto, a todas as autoridades, a quem o conhecimento e execução da referida lei pertencer, que a cumpram, e façam cumprir, e guardar tão inteiramente como nela se contém.
O Secretário d¢Estado dos Negócios da justiça a faça imprimir, publicar e correr.
Dada no Palácio do Rio de Janeiro, aos 10 de outubro, décimo da independência, e do Império.
Francisco de Lima e Silva
José da Costa Carvalho
João Bráulio Muniz
Diogo Antônio Feijó.
A partir dessa lei, outras leis vieram regulamentar a organização: foram criados o Estado-Maior – do qual faziam parte o comandante geral, um ajudante de ordens, um cirurgião-mor e um ajudante, um sargento secretário e um sargento quartel-mestre – e quatro Companhias de Infantaria e duas Companhias de Cavalaria com 100 e 75 soldados, respectivamente. Exigia-se idade entre 18 e 40 anos para a incorporação, instituía-se uma disciplina com penas para qualquer tipo de insubordinação, faltas e crimes de modo geral. Ficava sob a responsabilidade dos presidentes das províncias nomear o comando do Estado-Maior, considerado, portanto, cargo político e não de carreira.
As alterações de nomes da Polícia Militar de Minas Gerais demonstram que a corporação passou por diversas fases de organização até chegar ao estágio atual. Em 09 de junho de 1775, criou-se o Regimento Regular de Cavalaria de Minas, considerado como o marco histórico da corporação; em 12 de dezembro de 1831, esse regimento passou a denominar-se Corpo de Guardas Municipais Permanentes, que, em 02 de abril de 1840, mudou para Corpo Policial de Minas; que, em 12 de abril de 1890, mudou para Guarda Republicana; que, em 06 de maio de 1890, mudou para Corpos Militares de Polícia de Minas; que, em 24 de outubro de 1891, mudou para Força Pública de Minas; que, em 22 de julho de 1893, mudou para Brigada Policial de Minas Gerais; que em 30 de agosto de 1914, mudou para Força Pública de Minas; que em 10 de dezembro de 1940, mudou para Força Policial de Minas; em 18 de setembro de 1946, fixou-se o nome de Policia Militar de Minas Gerais. Tais alterações de nomes sugerem que essa organização policial teve sua história marcada por conflitos de identidade durante muito tempo. As conturbações sociais e as denúncias de fraudes e outras espécies de crimes envolvendo seus integrantes dificultaram ainda mais a efetivação da corporação.
Desde a Tropa de Linha e a constituição da Força Regular e Paga, passando-se pelas Companhias de Dragões até se efetivar como Polícia Militar em 1775, são feitas denúncias envolvendo os integrantes dessas corporações em contrabandos, fraudes e outros crimes.
A criação dessas corporações se deu, primeiramente, para atender aos interesses do Estado, que se preocupava com a manutenção do controle social. A polícia, de forma geral, não emergiu para atender prioritariamente à “segurança pública” da população, como tenta transparecer na história, mas para impedir qualquer tipo de contestação social que colocasse em risco a dominação das elites. A ambição pela riqueza fácil trouxe várias conturbações sociais que dificultaram a manutenção dos interesses dessa elite, que recorria ao Estado para se proteger através de um corpo de milícias sustentada pelo povo, mas que não estava a serviço deste.
CONCLUSÃO
Os acontecimentos policiais têm ocupado crescentemente importantes espaços na mídia. Desde o início dos anos 90, episódios históricos como, por exemplo, as chacinas de Carandiru, Vigário Geral, Favela Naval, Cidade de Deus; ou a mais recente na Baixada Fluminense, com 29 pessoas mortas no último dia 31 de março de 2005, bem como atos mais isolados e cotidianos das práticas policiais e até os movimentos desencadeados pelos policiais (nos diversos Estados para reivindicar salários e melhores condições de trabalho) tem alcançado destaque. Portanto, têm chegado à opinião pública as mazelas policiais. A violência policial tem sido motivo para elevar e aprofundar as discussões sobre a reformulação institucional das polícias de todo o país. Surge a velha questão Quis custodiet ipsos custodes
[8]?
Essas questões envolvendo a força policial suscitam perplexidade na população e descortinam nas academias uma preocupação de natureza cognitiva. A ignorância do brasileiro sobre as organizações policiais e a justiça criminal se reflete em dois pontos: no funcionamento da sociedade e nas academias, quando desafia a capacidade dos pesquisadores em formular soluções e propor controle para a força policial (BEATO, mimeogr.).
Diante disso, na tentativa de contribuir ao debate, procurei delinear alguns dos vários pontos em que pôde ser abordada a inoperância da polícia. A população precisa ser esclarecida sobre o trabalho da polícia; isso implica fazer um marketing da polícia (AQUINO, 1997). Além disso, as academias precisam propor agendas que possibilitem reformular as polícias e restabelecer, no mínimo, um parâmetro democrático para que as polícias, em geral, possam interagir em prol do combate à criminalidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1] Esse tipo de mina facilita os trabalhos dos minerados, pois o ouro fica sobre a terra.
[2] Em 1711, foi criada a primeira Vila em Minas Gerais, denominada Ribeirão de Nossa Senhora do
[3] Carta Régia dessa mesma data.
[4] Minas desmembrou-se de São Paulo e se tornou uma capitania em 1720
[5] Carmo, atualmente cidade de Mariana. Depois vieram as Vilas de Rio de Nossa Senhora da Conceição, atuais cidades de Sabará; São João Del Rei, Vila Nova da Rainha, atual Caéte, e Vila Nova de Nossa Senhora da Piedade, atual Pitangui.
[6] Soldados de Cavalaria
[7] Cobrança do Quinto, imposto sobre a extração do ouro.
[8] Quem guardará os próprios guardas?

sexta-feira, 18 de maio de 2007

Diálogo entre Einstein e Freud (correspondências)

Caputh junto a Potsdam, 30 de julho de 1932

Prezado Professor Freud

A proposta da Liga das Nações e de seu Instituto Internacional para a Cooperação Intelectual, em Paris, de que eu convidasse uma pessoa, de minha própria escolha, para um franco intercâmbio de pontos de vista sobre algum problema que eu poderia selecionar, oferece-me excelente oportunidade de conferenciar com o senhor a respeito de uma questão que, da maneira como as coisas estão, parece ser o mais urgente de todos os problemas que a civilização tem de enfrentar. Este é o problema: Existe alguma forma de livrar a humanidade da ameaça de guerra? É do conhecimento geral que, com o progresso da ciência de nossos dias, esse tema adquiriu significação de assunto de vida ou morte para a civilização, tal como a conhecemos; não obstante, apesar de todo o empenho demonstrado, todas as tentativas de solucioná-lo terminaram em lamentável fracasso.
Ademais, acredito que aqueles cuja atribuição é atacar o problema de forma profissional e prática, estão apenas adquirindo crescente consciência de sua impotência para abordá-lo, e agora possuem um vivo desejo de conhecer os pontos de vistas de homens que, absorvidos na busca da ciência, podem mirar os problemas do mundo na perspectiva que a distância permite. Quanto a mim, o objetivo habitual de meu pensamento não me permite uma compreensão interna das obscuras regiões da vontade e do sentimento humano. Assim, na indagação ora proposta, posso fazer pouco mais do que procurar esclarecer a questão em referência e, preparando o terreno das soluções mais óbvias, possibilitar que o senhor proporcione a elucidação do problema mediante o auxílio do seu profundo conhecimento da vida instintiva do homem. Existem determinados obstáculos psicológicos cuja existência um leigo em ciências mentais pode obscuramente entrever, cujas inter-relações e filigranas ele, contudo, é incompetente para compreender; estou convencido de que o senhor será capaz de sugerir métodos educacionais situados mais ou menos fora dos objetivos da política, os quais eliminarão esses obstáculos.
Como pessoa isenta de preconceitos nacionalistas, pessoalmente vejo uma forma simples de abordar o aspecto superficial (isto é, administrativo) do problema: a instituição, por meio de acordo internacional, de um organismo legislativo e judiciário para arbitrar todo conflito que surja entre nações. Cada nação submeter-se-ia à obediência às ordens emanadas desse organismo legislativo, a recorrer às suas decisões em todos os litígios, a aceitar irrestritamente suas decisões e a pôr em prática todas as medidas que o tribunal considerasse necessárias para a execução de seus decretos. Já de início, todavia, defronto-me com uma dificuldade; um tribunal é uma instituição humana que, em relação ao poder de que dispõe, é inadequada para fazer cumprir seus veredictos, está muito sujeito a ver suas decisões anuladas por pressões extrajudiciais. Este é um fato com que temos de contar; a lei e o poder inevitavelmente andam de mãos dadas, e as decisões jurídicas se aproximam mais da justiça ideal exigida pela comunidade (em cujo nome e em cujos interesses esses veredictos são pronunciados), na medida em que a comunidade tem efetivamente o poder de impor o respeito ao seu ideal jurídico. Atualmente, porém, estamos longe de possuir qualquer organização supranacional competente para emitir julgamentos de autoridade incontestável e garantir absoluto acatamento à execução de seus veredictos. Assim, sou levado ao meu primeiro princípio; a busca da segurança internacional envolve a renúncia incondicional, por todas as nações, em determinada medida, à sua liberdade de ação, ou seja, à sua soberania, e é absolutamente evidente que nenhum outro caminho pode conduzir a essa segurança.
O insucesso, malgrado sua evidente sinceridade, de todos os esforços, durante a última década, no sentido de alcançar essa meta, não deixa lugar à dúvida de que estão em jogo fatores psicológicos de peso que paralisam tais esforços. Alguns desses fatores são mais fáceis de detectar. O intenso desejo de poder, que caracteriza a classe governante em cada nação, é hostil a qualquer limitação de sua soberania nacional. Essa fome de poder político está acostumada a medrar nas atividades, de um outro grupo, cujas aspirações são de caráter econômico, puramente mercenário. Refiro-me especialmente a esse grupo reduzido, porém decidido, existente em cada nação, composto de indivíduos que, indiferentes às condições e aos controles sociais, consideram a guerra, a fabricação e venda de armas simplesmente como uma oportunidade de expandir seus interesses pessoais e ampliar a sua autoridade pessoal.
O reconhecimento desse fato, no entanto, é simplesmente o primeiro passo para uma avaliação da situação atual. Logo surge uma outra questão: como é possível a essa pequena súcia dobrar a vontade da maioria, que se resigna a perder e a sofrer com uma situação de guerra, a serviço da ambição de poucos? (Ao falar em maioria, não excluo os soldados, de todas as graduações, que escolheram a guerra como profissão, na crença de que estejam servindo à defesa dos mais altos interesses de sua raça e de que o ataque seja, muitas vezes, o melhor meio de defesa.) Parece que uma resposta óbvia a essa pergunta seria que a minoria, a classe dominante atual, possui as escolas, a imprensa e, geralmente, também a Igreja, sob seu poderio. Isto possibilita organizar e dominar as emoções das massas e torná-las instrumento da mesma minoria.
Ainda assim, nem sequer essa resposta proporciona uma solução completa. Daí surge uma nova questão: como esses mecanismos conseguem tão bem despertar nos homens um entusiasmo extremado, a ponto de estes sacrificarem suas vidas? Pode haver apenas uma resposta. É porque o homem encerra dentro de si um desejo de ódio e destruição. Em tempos normais, essa paixão existe em estado latente, emerge apenas em circunstâncias anormais; é, contudo, relativamente fácil despertá-la e elevá-la à potência de psicose coletiva. Talvez aí esteja o ponto crucial de todo o complexo de fatores que estamos considerando, um enigma que só um especialista na ciência dos instintos humanos pode resolver.
Com isso, chegamos à nossa última questão. É possível controlar a evolução da mente do homem, de modo a torná-lo à prova das psicoses do ódio e da destrutividade? Aqui não me estou referindo tão-somente às chamadas massas incultas. A experiência prova que é, antes, a chamada ‘Intelligentzia’ a mais inclinada a ceder a essas desastrosas sugestões coletivas, de vez que o intelectual não tem contato direto com o lado rude da vida, mas a encontra em sua forma sintética mais fácil — na página impressa.
Para concluir: Até aqui somente falei das guerras entre nações, aquelas que se conhecem como conflitos internacionais. Estou, porém, bem consciente de que o instinto agressivo opera sob outras formas e em outras circunstâncias. (Penso nas guerras civis, por exemplo, devidas à intolerância religiosa, em tempos precedentes, hoje em dia, contudo, devidas a fatores sociais; ademais, também nas perseguições a minorias raciais.) Foi deliberada a minha insistência naquilo que é a mais típica, mais cruel e extravagante forma de conflito entre homem e homem, pois aqui temos a melhor ocasião de descobrir maneiras e meios de tornar impossíveis qualquer conflito armado.
Sei que nos escritos do senhor podemos encontrar respostas, explícitas ou implícitas, a todos os aspectos desse problema urgente e absorvente. Mas seria da maior utilidade para nós todos que o senhor apresentasse o problema da paz mundial sob o enfoque das suas mais recentes descobertas, pois umatal apresentação bem poderia demarcar o caminho para novos e frutíferos métodos de ação.

Muito cordialmente,
A. EINSTEIN. Viena, setembro de 1932.

Prezado Professor Einstein,

Quando soube que o senhor intencionava convidar-me para um intercâmbio de pontos de vista sobre um assunto que lhe interessava e que parecia merecer o interesse de outros além do senhor, aceitei prontamente. Esperava que o senhor escolhesse um problema situado nas fronteiras daquilo que é atualmente cognoscível, um problema em relação ao qual cada um de nós, físico e psicólogo, pudesse ter o seu ângulo de abordagem especial, e no qual pudéssemos nos encontrar, sobre o mesmo terreno, embora partindo de direções diferentes. O senhor apanhou-me de surpresa, no entanto, ao perguntar o que pode ser feito para proteger a humanidade da maldição da guerra. Inicialmente me assustei com o pensamento de minha — quase escrevi ‘nossa’ — incapacidade de lidar com o que parecia ser um problema prático, um assunto para estadistas. Depois, no entanto, percebi que o senhor havia proposto a questão, não na condição de cientista da natureza e físico, mas como filantropo: o senhor estava seguindo a sugestão da Liga das Nações, assim como FridtjofNansen, o explorador polar, assumiu a tarefa de auxiliar as vítimas famintas e sem teto da guerra mundial. Além do mais, considerei que não me pediam para propor medidas práticas, mas sim apenas que eu delimitasse o problema da evitação da guerra tal como ele se configura aos olhos de um cientista da psicologia. Também nesse ponto, o senhor disse quase tudo o que há a dizer sobre o assunto. Embora o senhor se tenha antecipado a mim, ficarei satisfeito em seguir no seu rasto e me contentarei com confirmar tudo o que o senhor disse, ampliando-o com o melhor do meu conhecimento — ou das minhas conjecturas.
O senhor começou com a relação entre o direito e o poder. Não se pode duvidar de que seja este o ponto de partida correto de nossa investigação. Mas, permita-me substituir a palavra ‘poder’ pela palavra mais nua e crua violência’? Atualmente, direito e violência se nos afiguram como antíteses. No entanto, é fácil mostrar que uma se desenvolveu da outra e, se nos reportarmos às origens primeiras e examinarmos como essas coisas se passaram, resolve-se o problema facilmente. Perdoe-me se, nessas considerações que se seguem, eu trilhar chão familiar e comumente aceito, como se isto fosse novidade; o fio de minhas argumentações o exige.
É, pois, um princípio geral que os conflitos de interesses entre os homens são resolvidos pelo uso da violência. É isto o que se passa em todo o reino animal, do qual o homem não tem motivo por que se excluir. No caso do homem, sem dúvida ocorrem também conflitos de opinião que podem chegar a atingir a mais raras nuanças da abstração e que parecem exigir alguma outra técnica para sua solução. Esta é, contudo, uma complicação a mais. No início, numa pequena horda humana, era a superioridade da força muscular que decidia quem tinha a posse das coisas ou quem fazia prevalecer sua vontade. A força muscular logo foi suplementada e substituída pelo uso de instrumentos: o vencedor era aquele que tinha as melhores armas ou aquele que tinha a maior habilidade no seu manejo. A partir do momento em que as armas foram introduzidas, a superioridade intelectual já começou a substituir a força muscular bruta; mas o objetivo final da luta permanecia o mesmo — uma ou outra facção tinha de ser compelida a abandonar suas pretensões ou suas objeções, por causa do dano que lhe havia sido infligido e pelo desmantelamento de sua força. Conseguia-se esse objetivo de modo mais completo se a violência do vencedor eliminasse para sempre o adversário, ou seja, se o matasse. Isto tinha duas vantagens: o vencido não podia restabelecer sua oposição, e o seu destino dissuadiria outros de seguirem seu exemplo. Ademais disso, matar um inimigo satisfazia uma inclinação instintual, que mencionarei posteriormente. À intenção de matar opor-se-ia a reflexão de que o inimigo podia ser utilizado na realização de serviços úteis, se fosse deixado vivo e num estado de intimidação. Nesse caso, a violência do vencedor contentava-se com subjugar, em vez de matar, o vencido. Foi este o início da idéia de poupar a vida de um inimigo, mas a partir daí o vencedor teve de contar com a oculta sede de vingança do adversário vencido e sacrificou uma parte de sua própria segurança.
Esta foi, por conseguinte, a situação inicial dos fatos: a dominação por parte de qualquer um que tivesse poder maior — a dominação pela violência bruta ou pela violência apoiada no intelecto. Como sabemos, esse regime foi modificado no transcurso da evolução. Havia um caminho que se estendia da violência ao direito ou à lei. Que caminho era este? Penso ter sido apenas um: o caminho que levava ao reconhecimento do fato de que à força superior de um único indivíduo, podia-se contrapor a união de diversos indivíduos fracos. ‘L’union fait la force.’ A violência podia ser derrotada pela união, e o poder daqueles que se uniam representava, agora, a lei, em contraposição à violência do indivíduo só. Vemos, assim, que a lei é a força de uma comunidade. Ainda é violência, pronta a se voltar contra qualquer indivíduo que se lhe oponha; funciona pelos mesmos métodos e persegue os mesmos objetivos. A única diferença real reside no fato de que aquilo que prevalece não é mais a violência de um indivíduo, mas a violência da comunidade. A fim de que a transição da violência a esse novo direito ou justiça pudesse ser efetuada, contudo, uma condição psicológica teve de ser preenchida. A união da maioria devia ser estável e duradoura. Se apenas fosse posta em prática com o propósito de combater um indivíduo isolado e dominante, e fosse dissolvida depois da derrota deste, nada se teria realizado. A pessoa, a seguir, que se julgasse superior em força, haveria de mais uma vez tentar estabelecer o domínio através da violência, e o jogo se repetiria ad infinitum. A comunidade deve manter-se permanentemente, deve organizar-se, deve estabelecer regulamentos para antecipar-se ao risco de rebelião e deve instituir autoridades para fazer com que esses regulamentos — as leis — sejam respeitadas, e para superintender a execução dos atos legais de violência. O reconhecimento de uma entidade de interesses como estes levou ao surgimento de vínculos emocionais entre os membros de um grupo de pessoas unidas — sentimentos comuns, que são a verdadeira fonte de sua força.

Acredito que, com isso, já tenhamos todos os elementos essenciais: a violência suplantada pela transferência do poder a uma unidade maior, que se mantém unida por laços emocionais entre os seus membros. O que resta dizer não é senão uma ampliação e uma repetição desse fato.
A situação é simples enquanto a comunidade consiste em apenas poucos indivíduos igualmente fortes. As leis de uma tal associação irão determinar o grau em que, se a segurança da vida comunal deve ser garantida, cada indivíduo deve abrir mão de sua liberdade pessoal de utilizar a sua força para fins violentos. Um estado de equilíbrio dessa espécie, porém, só é concebível teoricamente. Na realidade, a situação complica-se pelo fato de que, desde os seus primórdios, a comunidade abrange elementos de força desigual — homens e mulheres, pais e filhos — e logo, como conseqüência da guerra e da conquista, também passa a incluir vencedores e vencidos, que se transformam em senhores e escravos. A justiça da comunidade então passa a exprimir graus desiguais de poder nela vigentes. As leis são feitas por e para os membros governantes e deixa pouco espaço para os direitos daqueles que se encontram em estado de sujeição. Dessa época em diante, existem na comunidade dois fatores em atividade que são fonte de inquietação relativamente a assuntos da lei, mas que tendem, ao mesmo tempo, a um maior crescimento da lei. Primeiramente, são feitas, por certos detentores do poder, tentativas, no sentido de se colocarem acima das proibições que se aplicam a todos — isto é, procuram escapar do domínio pela lei para o domínio pela violência. Em segundo lugar, os membros oprimidos do grupo fazem constantes esforços para obter mais poder e ver reconhecidas na lei algumas modificações efetuadas nesse sentido — isto é, fazem pressão para passar da justiça desigual para a justiça igual para todos. Essa segunda tendência torna-se especialmente importante se uma mudança real de poder ocorre dentro da comunidade, como pode ocorrer em conseqüência de diversos fatores históricos. Nesse caso, o direito pode gradualmente adaptar-se à nova distribuição do poder; ou, como sucede com maior freqüência, a classe dominante se recusa a admitir a mudança e a rebelião e a guerra civil se seguem, com uma suspensão temporária da lei e com novas tentativas de solução mediante a violência, terminando pelo estabelecimento de um novo sistema de leis. Ainda há uma terceira fonte da qual podem surgir modificações da lei, e que invariavelmente se exprime por meios pacíficos: consiste na transformação cultural dos membros da comunidade. Isto, porém, propriamente faz parte de uma outra correlação e deve ser considerado posteriormente.Ver em [[1]].
Vemos, pois, que a solução violenta de conflitos de interesses não é evitada sequer dentro de uma comunidade. As necessidades cotidianas e os interesses comuns, inevitáveis ali onde pessoas vivem juntas num lugar, tendem, contudo, a proporcionar a essas lutas uma conclusão rápida, e, sob tais condições, existe uma crescente probabilidade de se encontrar uma solução pacífica. Outrossim, um rápido olhar pela história da raça humana revela uma série infindável de conflitos entre uma comunidade e outra, ou diversas outras, entre unidades maiores e menores — entre cidades, províncias, raças, nações, impérios —, que quase sempre se formaram pela força das armas. Guerras dessa espécie terminam ou pelo saque ou pelo completo aniquilamento e conquista de uma das partes. É impossível estabelecer qualquer julgamento geral das guerras de conquista. Algumas, como as empreendidas pelos mongóis e pelos turcos, não trouxeram senão malefícios. Outras, pelo contrário, contribuíram para a transformação da violência em lei, ao estabelecerem unidades maiores, dentro das quais o uso da violência se tornou impossível e nas quais um novo sistema de leis solucionou os conflitos. Desse modo, as conquistas dos romanos deram aos países próximos ao Mediterrâneo a inestimável pax romana, e a ambição dos reis franceses de ampliar os seus domínios criou uma França pacificamente unida e florescente. Por paradoxal que possa parecer, deve-se admitir que a guerra poderia ser um meio nada inadequado de estabelecer o reino ansiosamente desejado de paz ‘perene’, pois está em condições de criar as grandes unidades dentro das quais um poderoso governo central torna impossíveis outras guerras. Contudo, ela falha quanto a esse propósito, pois os resultados da conquista são geralmente de curta duração: as unidades recentemente criadas esfacelam-se novamente, no mais das vezes devido a uma falta de coesão entre as partes que foram unidas pela violência. Ademais, até hoje as unificações criadas pela conquista, embora de extensão considerável, foram apenas parciais, e os conflitos entre elas ensejaram, mais do que nunca, soluções violentas. O resultado de todos esses esforços bélicos consistiu, assim, apenas em a raça humana haver trocado as numerosas e realmente infindáveis guerras menores por guerras em grande escala, que são raras, contudo muito mais destrutivas.
Se nos voltamos para os nossos próprios tempos, chegamos a mesma conclusão a que o senhor chegou por um caminho mais curto. As guerras somente serão evitadas com certeza, se a humanidade se unir para estabelecer uma autoridade central a que será conferido o direito de arbitrar todos os conflitos de interesses. Nisto estão envolvidos claramente dois requisitos distintos: criar uma instância suprema e dotá-la do necessário poder. Uma sem a outra seria inútil. A Liga das Nações é destinada a ser uma instância dessa espécie, mas a segunda condição não foi preenchida: a Liga das Nações não possui poder próprio, e só pode adquiri-lo se os membros da nova união, os diferentes estados, se dispuserem a cedê-lo. E, no momento, parecem escassas as perspectivas nesse sentido. A instituição da Liga das Nações seria totalmente ininteligível se se ignorasse o fato de que houve uma tentativa corajosa, como raramente (talvez jamais em tal escala) se fez antes. Ela é uma tentativa de fundamentar a autoridade sobre um apelo a determinadas atitudes idealistas da mente (isto é, a influência coercitiva), que de outro modo se baseia na posse da força. Já vimos [[1]] que uma comunidade se mantém unida por duas coisas: a força coercitiva da violência e os vínculos emocionais (identificações é o nome técnico) entre seus membros. Se estiver ausente um dos fatores, é possível que a comunidade se mantenha ainda pelo outro fator. As idéias a que se faz o apelo só podem, naturalmente, ter importância se exprimirem afinidades importantes entre os membros, e pode-se perguntar quanta força essas idéias podem exercer. A história nos ensina que, em certa medida, elas foram eficazes. Por exemplo, a idéia do pan-helenismo, o sentido de ser superior aos bárbaros de além-fronteiras — idéia que foi expressa com tanto vigor no conselho anfictiônico, nos oráculos e nos jogos —, foi forte a ponto de mitigar os costumes guerreiros entre os gregos, embora, é claro, não suficientemente forte para evitar dissensões bélicas entre as diferentes partes da nação grega, ou mesmo para impedir uma cidade ou confederação de cidades de se aliar com o inimigo persa, a fim de obter vantagem contra algum rival. A identidade de sentimentos entre os cristãos, embora fosse poderosa, não conseguiu, à época do Renascimento, impedir os Estados Cristãos, tanto os grandes como os pequenos, de buscar o auxílio do sultão em suas guerras de uns contra os outros. E atualmente não existe idéia alguma que, espera-se, venha a exercer uma autoridade unificadora dessa espécie. Na realidade, é por demais evidente que os ideais nacionais, pelos quais as nações se regem nos dias de hoje, atuam em sentido oposto. Algumas pessoas tendem a profetizar que não será possível pôr um fim à guerra, enquanto a forma comunista de pensar não tenha encontrado aceitação universal. Mas esse objetivo, em todo caso, está muito remoto, atualmente, e talvez só pudesse ser alcançado após as mais terríveis guerras civis. Assim sendo, presentemente, parece estar condenada ao fracasso a tentativa de substituir a força real pela força das idéias. Estaremos fazendo um cálculo errado se desprezarmos o fato de que a lei, originalmente, era força bruta e que, mesmo hoje, não pode prescindir do apoio da violência.

Passo agora, a acrescentar algumas observações aos seus comentários. O senhor expressa surpresa ante o fato de ser tão fácil inflamar nos homens o entusiasmo pela guerra, e insere a suspeita, ver em[[1]], de que neles exige em atividade alguma coisa — um instinto de ódio e de destruição — que coopera com os esforços dos mercadores da guerra. Também nisto apenas posso exprimir meu inteiro acordo. Acreditamos na existência de um instinto dessa natureza, e durante os últimos anos temo-nos ocupado realmente em estudar suas manifestações. Permita-me que me sirva dessa oportunidade para apresentar-lhe uma parte da teoria dos instintos que, depois de muitas tentativas hesitantes e muitas vacilações de opinião, foi formulada pelos que trabalham na área da psicanálise?
De acordo com nossa hipótese, os instintos humanos são de apenas dois tipos: aqueles que tendem a preservar e a unir — que denominamos ‘eróticos’, exatamente no mesmo sentido em que Platão usa a palavra ‘Eros’ em seu Symposium, ou ‘sexuais’, com uma deliberada ampliação da concepção popular de ‘sexualidade’ —; e aqueles que tendem a destruir e matar, os quais agrupamos como instinto agressivo ou destrutivo. Como o senhor vê, isto não é senão uma formulação teórica da universalmente conhecida oposição entre amor e ódio, que talvez possa ter alguma relação básica com a polaridade entre atração e repulsão, que desempenha um papel na sua área de conhecimentos. Entretanto, não devemos ser demasiado apressados em introduzir juízos éticos de bem e de mal. Nenhum desses dois instintos é menos essencial do que o outro; os fenômenos da vida surgem da ação confluente ou mutuamente contrária de ambos. Ora, é como se um instinto de um tipo dificilmente pudesse operar isolado; está sempre acompanhado — ou, como dizemos, amalgamado — por determinada quantidade do outro lado, que modifica o seu objetivo, ou, em determinados casos, possibilita a consecução desse objetivo. Assim, por exemplo, o instinto de autopreservação certamente é de natureza erótica; não obstante, deve ter à sua disposição a agressividade, para atingir seu propósito. Dessa forma, também o instinto de amor, quando dirigido a um objeto, necessita de alguma contribuição do instinto de domínio, para que obtenha a posse desse objeto. A dificuldade de isolar as duas espécies de instinto em suas manifestações reais, é, na verdade, o que até agora nos impedia de reconhecê-los.
Se o senhor quiser acompanhar-me um pouco mais, verá que as ações humanas estão sujeitas a uma outra complicação de natureza diferente. Muito raramente uma ação é obra de um impulso instintual único (que deve estar composto de Eros e destrutividade). A fim de tornar possível uma ação, há que haver, via de regra, uma combinação desses motivos compostos. Isto, há muito tempo, havia sido percebido por um especialista na sua matéria, o professor G. C. Lichtenberg, que ensinava física em Göttingen, durante o nosso classicismo, embora, talvez, ele fosse ainda mais notável como psicólogo do que como físico. Ele inventou uma ‘bússola de motivos’, pois escreveu: ‘Os motivos que nos levam a fazer algo poderiam ser dispostos à maneira da rosa-dos-ventos e receber nomes de uma forma parecida: por exemplo, “pão — pão — fama” ou “fama — fama — pão”.’ De forma que, quando os seres humanos são incitados à guerra, podem ter toda uma gama de motivos para se deixarem levar — uns nobres, outros vis, alguns francamente declarados, outros jamais mencionados. Não há por que enumerá-los todos. Entre eles está certamente o desejo da agressão e destruição: as incontáveis crueldades que encontramos na história e em nossa vida de todos os dias atestam a sua existência e a sua força. A satisfação desses impulsosdestrutivos naturalmente é facilitada por sua mistura com outros motivos de natureza erótica e idealista. Quando lemos sobre as atrocidades do passado, amiúde é como se os motivos idealistas servissem apenas de excusa para os desejos destrutivos; e, às vezes — por exemplo, no caso das crueldades da Inquisição — é como se os motivos idealistas tivessem assomado a um primeiro plano na consciência, enquanto os destrutivos lhes emprestassem um reforço inconsciente. Ambos podem ser verdadeiros.
Receio que eu possa estar abusando do seu interesse, que, afinal, se volta para a prevenção da guerra e não para nossas teorias. Gostaria, não obstante, de deter-me um pouco mais em nosso instinto destrutivo, cuja popularidade não é de modo algum igual à sua importância. Como conseqüência de um pouco de especulação, pudemos supor que esse instinto está em atividade em toda criatura viva e procura levá-la ao aniquilamento, reduzir a vida à condição original de matéria inanimada. Portanto, merece, com toda seriedade, ser denominado instinto de morte, ao passo que os instintos eróticos representam o esforço de viver. O instinto de morte torna-se instinto destrutivo quando, com o auxílio de órgãos especiais, é dirigido para fora, para objetos. O organismo preserva sua própria vida, por assim dizer, destruindo uma vida alheia. Uma parte do instinto de morte, contudo, continua atuante dentro do organismo, e temos procurado atribuir numerosos fenômenos normais e patológicos a essa internalização do instinto de destruição. Foi-nos até mesmo imputada a culpa pela heresia de atribuir a origem da consciência a esse desvio da agressividade para dentro. O senhor perceberá que não é absolutamente irrelevante se esse processo vai longe demais: é positivamente insano. Por outro lado, se essas forças se voltam para a destruição no mundo externo, o organismo se aliviará e o efeito deve ser benéfico. Isto serviria de justificação biológica para todos os impulsos condenáveis e perigosos contra os quais lutamos. Deve-se admitir que eles se situam mais perto da Natureza do que a nossa resistência, para a qual também é necessário encontrar uma explicação. Talvez ao senhor possa parecer serem nossas teorias uma espécie de mitologia e, no presente caso, mitologia nada agradável. Todas as ciências, porém, não chegam, afinal, a uma espécie de mitologia como esta? Não se pode dizer o mesmo, atualmente, a respeito da sua física?

Para nosso propósito imediato, portanto, isto é tudo o que resulta daquilo que ficou dito: de nada vale tentar eliminar as inclinações agressivas dos homens. Segundo se nos conta, em determinadas regiões privilegiadas da Terra, onde a natureza provê em abundância tudo o que é necessário ao homem, existem povos cuja vida transcorre em meio à tranqüilidade, povos que não conhecem nem a coerção nem a agressão. Dificilmente posso acreditar nisso, e me agradaria saber mais a respeito de coisas tão afortunadas. Também os bolchevistas esperam ser capazes de fazer a agressividade humana desaparecer mediante a garantia de satisfação de todas as necessidades materiais e o estabelecimento da igualdade, em outros aspectos, entre todos os membros da comunidade. Isto, na minha opinião, é uma ilusão. Eles próprios, hoje em dia, estão armados da maneira mais cautelosa, e o método não menos importante que empregam para manter juntos os seus adeptos é o ódio contra qualquer pessoa além das suas fronteiras. Em todo caso, como o senhor mesmo observou, não há maneira de eliminar totalmente os impulsos agressivos do homem; pode-se tentar desviá-los num grau tal que não necessitem encontrar expressão na guerra.
Nossa teoria mitológica dos instintos facilita-nos encontrar a fórmula para métodos indiretos de combater a guerra. Se o desejo de aderir à guerra é um efeito do instinto destrutivo, a recomendação mais evidente será contrapor-lhe o seu antagonista, Eros. Tudo o que favorece o estreitamento dos vínculos emocionais entre os homens deve atuar contra a guerra. Esses vínculos podem ser de dois tipos. Em primeiro lugar, podem ser relações semelhantes àquelas relativas a um objeto amado, embora não tenham uma finalidade sexual. A psicanálise não tem motivo porque se envergonhar se nesse ponto fala de amor, pois a própria religião emprega as mesmas palavras: ‘Ama a teu próximo como a ti mesmo.’ Isto, todavia, é mais facilmente dito do que praticado. O segundo vínculo emocional é o que utiliza a identificação. Tudo o que leva os homens a compartilhar de interesses importantes produz essa comunhão de sentimento, essas identificações. E a estrutura da sociedade humana se baseia nelas, em grande escala.
Uma queixa que o senhor formulou acerca do abuso de autoridade,ver em [[1]] leva-me a uma outra sugestão para o combate indireto à propensão à guerra. Um exemplo da desigualdade inata e irremovível dos homens é sua tendência a se classificarem em dois tipos, o dos líderes e o dos seguidores. Esses últimos constituem a vasta maioria; têm necessidade de uma autoridade que tome decisões por eles e à qual, na sua maioria devotam uma submissão ilimitada. Isto sugere que se deva dar mais atenção, do que até hoje se tem dado, à educação da camada superior dos homens dotados de mentalidade independente, não passível de intimidação e desejosa de manter-se fiel à verdade, cuja preocupação seja a de dirigir as massas dependentes. É desnecessário dizer que as usurpações cometidas pelo poder executivo do Estado e a proibição estabelecida pela Igreja contra a liberdade de pensamento não são nada favoráveis à formação de uma classe desse tipo. A situação ideal, naturalmente, seria a comunidade humana que tivesse subordinado sua vida instintual ao domínio da razão. Nada mais poderia unir os homens de forma tão completa e firme, ainda que entre eles não houvesse vínculos emocionais. No entanto, com toda a probabilidade isto é uma expectativa utópica. Não há dúvida de que os outros métodos indiretos de evitar a guerra são mais exeqüíveis, embora não prometam êxito imediato. Vale lembrar aquela imagem inquietante do moinho que mói tão devagar, que as pessoas podem morrer de fome antes de ele poder fornecer sua farinha.

O resultado, como o senhor vê, não é muito frutífero quando um teórico desinteressado é chamado a opinar sobre um problema prático urgente. É melhor a pessoa, em qualquer caso especial, dedicar-se a enfrentar o perigo com todos os meios à mão. Eu gostaria, porém, de discutir mais uma questão que o senhor não menciona em sua carta, a qual me interessa em especial. Por que o senhor, eu e tantas outras pessoas nos revoltamos tão violentamente contra a guerra? Por que não a aceitamos como mais uma das muitas calamidades da vida? Afinal, parece ser coisa muito natural, parece ter uma base biológica e ser dificilmente evitável na prática. Não há motivo para se surpreender com o fato de eu levantar essa questão. Para o propósito de uma investigação como esta, poder-se-ia, talvez, permitir-se usar uma máscara de suposto alheamento. A resposta à minha pergunta será a de que reagimos à guerra dessa maneira, porque toda pessoa tem o direito à sua própria vida, porque a guerra põe um término a vidas plenas de esperanças, porque conduz os homens individualmente a situações humilhantes, porque os compele, contra a sua vontade, a matar outros homens e porque destrói objetos materiais preciosos, produzidos pelo trabalho da humanidade. Outras razões mais poderiam ser apresentadas, como a de que, na sua forma atual, a guerra já não é mais uma oportunidade de atingir os velhos ideais de heroísmo, e a de que, devido ao aperfeiçoamento dos instrumentos de destruição, uma guerra futura poderia envolver o extermínio de um dos antagonistas ou, quem sabe, de ambos. Tudo isso é verdadeiro, e tão incontestavelmente verdadeiro, que não se pode senão sentir perplexidade ante o fato de a guerra ainda não ter sido unanimemente repudiada. Sem dúvida, é possível o debate em tornode alguns desses pontos. Pode-se indagar se uma comunidade não deveria ter o direito de dispor da vida dos indivíduos; nem toda guerra é passível de condenação em igual medida; de vez que existem países e nações que estão preparados para a destruição impiedosa de outros, esses outros devem ser armados para a guerra. Mas não me deterei em nenhum desses aspectos; não constituem aquilo que o senhor deseja examinar comigo, e tenho em mente algo diverso. Penso que a principal razão por que nos rebelamos contra a guerra é que não podemos fazer outra coisa. Somos pacifistas porque somos obrigados a sê-lo, por motivos orgânicos, básicos. E sendo assim, temos dificuldade em encontrar argumentos que justifiquem nossa atitude.
Sem dúvida, isto exige alguma explicação. Creio que se trata do seguinte. Durante períodos de tempo incalculáveis, a humanidade tem passado por um processo de evolução cultural. (Sei que alguns preferem empregar o termo ‘civilização’). É a esse processo que devemos o melhor daquilo em que nos tornamos, bem como uma boa parte daquilo de que padecemos. Embora suas causas e seus começos sejam obscuros e incerto o seu resultado, algumas de suas características são de fácil percepção. Talvez esse processo esteja levando à extinção a raça humana, pois em mais de um sentido ele prejudica a função sexual; povos incultos e camadas atrasadas da população já se multiplicam mais rapidamente do que as camadas superiormente instruídas. Talvez se possa comparar o processo à domesticação de determinadas espécies animais, e ele se acompanha, indubitavelmente, de modificações físicas; mas ainda não nos familiarizamos com a idéia de que a evolução da civilização é um processo orgânico dessa ordem. As modificações psíquicas que acompanham o processo de civilização são notórias e inequívocas. Consistem num progressivo deslocamento dos fins instintuais e numa limitação imposta aos impulsos instintuais. Sensações que para os nossos ancestrais eram agradáveis, tornaram-se indiferentes ou até mesmo intoleráveis para nós; há motivos orgânicos para as modificações em nossos ideais éticos e estéticos. Dentre as características psicológicas da civilização, duas aparecem como as mais importantes: o fortalecimento do intelecto, que está começando a governar a vida instintual, e a internalização dos impulsos agressivos com todas as suas conseqüentes vantagens e perigos. Ora, a guerra se constitui na mais óbvia oposição à atitude psíquica que nos foi incutida pelo processo de civilização, e por esse motivo não podemos evitar de nos rebelar contra ela; simplesmente não podemos mais nos conformar com ela. Isto não é apenas um repúdio intelectual e emocional; nós, os pacifistas, temos uma intolerância constitucional à guerra, digamos, uma idiossincrasia exacerbada no mais alto grau. Realmente, parece que o rebaixamento dos padrões estéticos na guerra desempenha um papel dificilmente menor em nossa revolta do que as suas crueldades.
E quanto tempo teremos de esperar até que o restante da humanidade também se torne pacifista? Não há como dizê-lo. Mas pode não ser utópico esperar que esses dois fatores, a atitude cultural e o justificado medo das conseqüências de uma guerra futura, venham a resultar, dentro de um tempo previsível, em que se ponha um término à ameaça de guerra. Por quais caminhos ou por que atalhos isto se realizará, não podemos adivinhar. Mas uma coisa podemos dizer: tudo o que estimula o crescimento da civilização trabalha simultaneamente contra a guerra.

Espero que o senhor me perdoe se o que eu disse o desapontou, e com a expressão de toda estima, subscrevo-me,

Cordialmente,

SIGM. FREUD

terça-feira, 17 de abril de 2007

O CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO DA POBREZA BRASILEIRA

Introdução

A pretensão desse trabalho é trazer para o debate as múltiplas facetas das pobrezas existentes no Brasil[1]. Recentemente, tem se referido ao problema da pobreza como uma das desditas das sociedades excluídas do contexto do sistema de produção de mercadorias. Para uns, a pobreza é um fenômeno que está associado à escassez ou má distribuição dos recursos econômicos; outros entendem que a pobreza é um fenômeno complexo e de difícil solução, pois envolve fatores políticos, culturais e ainda aqueles estritamente tecnológicos que demandam conhecimentos e domínios das ciências que ativam os processos produtivos configurados no programa capitalista vigente.
A compreensão da pobreza na perspectiva positivista procura medi-la através dos dados quantitativos para construir argumentos que procuram explicar o fenômeno através da esfera econômica (Demo, 2003). Esses argumentos ressaltam que a origem do problema está na base distributiva da renda, sugerindo portanto, que a pobreza se resolve com o crescimento econômico, desde que associado aos programas de políticas distributivas suficientes para amenizar a escassez de bens econômicos. Entretanto, o crescimento econômico por si não implica, necessariamente, em diminuição das desigualdades existentes nos países denominados emergentes ou de Terceiro Mundo.
Por outro lado, há de se considerar que a etiologia da exclusão social tem como amálgama uma profusão de carências materiais que se processam concomitantemente com a pobreza política. Compreender o fenômeno da pobreza exige uma abordagem que privilegia a politicidade, já que, para Demo (2003), a politicidade detém o signo do sujeito, não como soberania do ser humano sobre todos os outros seres, mas como habilidade de se constituir capaz de conduzir, até certo ponto, sua história ou de fazer história própria.
Na perspectiva positivista, que procura argumentar através das evidências econômicas e estatísticas, procura mostrar que o crescimento econômico junto com a urbanização reflete nas desigualdades sociais, sugerindo que o é possível estabelecer uma relação causa/efeito entre esses fatores e contribuir para diminuir as desigualdades sociais e colocar o Brasil nos caminhos do desenvolvimento, espelhado pelo modelo norte-americano. Entretanto, na maioria dos países cuja economia apresentou elevado índices de crescimento nos últimos anos, verificou-se um alargamento das desigualdades sociais, que tem como resultante a formação de uma massa de excluídos em constante movimento na procura de meios de sobrevivência nos grandes centros urbanos de todo o mundo. A China, segundo dados publicados recentemente, é um exemplo que ilustra o exposto acima.[2]
Nesse trabalho, a questão da pobreza brasileira será abordada a partir das matrizes históricas que deram origem a sociabilidade brasileira. Serão evidenciadas as bases que desencadearam as práticas e os costumes sociais que constituíram o imaginário cultural brasileiro que se caracteriza pela tolerância e subserviência extremados.
Para alguns autores[3], esses fatores emolduraram as práticas sociais que ainda sobrevivem na estrutura do imaginário cultural brasileiro. Tais práticas se expressam através dos arranjos individuais para a subserviência, da tolerância, do oportunismo como recurso para as diversas conquistas pessoais, as dificuldades de constituir associações etc.


Historicidade da pobreza brasileira

A crise social desencadeada pelos fatores demográficos e econômicos que se alastrou pela Europa trouxe consigo perturbações para as elites dos principais países desse continente. A rápida expansão demográfica iniciada por volta do século XV atordoou os reis e incomodou os proprietários de terras, ao mesmo tempo em que desestabilizava a harmonia das cidades, cujos habitantes viviam sobressaltados com a abundância de roubos, assassinatos, sem antes vistos na história do velho continente. A horda de pícaros, vagabundos, mendigos, bandoleiros que vagavam pelos campos e vilas anunciavam as crescentes desigualdades humanas com efeitos infaustos se multiplicando em profusão na Inglaterra, na França e nos países ibéricos.
Na Inglaterra, a legislação era de uma severidade inaudita, punindo com a morte, indistintamente, o ladrão, o vagabundo e o assassino. Em Portugal, as elites comerciantes, políticas, nobres, senhores de terras e burocratas tornaram-se cada vez mais ricas e ostentavam luxuria sem precedentes na historia desse povo. Mas uma parte significativa da população se deteriorava e formava uma massa de miseráveis que provocava instabilidade, ameaçava as elites constituídas por toda Europa e irradiava desassossego entre os dirigentes espanhóis, franceses, ingleses e portugueses que, juntos, se empreenderam na solução para o problema. Para uns, a solução seria a expansão do continente com a finalidade de alojar o excedente demográfico, para outros, a solução estaria no éden, lugar perfeito onde todos os males seriam abolidos e os humanos, que já eram iguais quanto ao espírito, se tornariam iguais também corporalmente. Para que isso se tornasse realidade bastaria encontrar esse lugar perfeito, utópico, tão bem representado por Thomas More (1516).
More reflete fielmente as injustiças e misérias da sociedade feudal, ainda ressaltam as particularidades do povo inglês sob o reinado de Henrique VII, tece a primeira crítica fundamentada do regime burguês e encerra uma análise profunda das particularidades inerentes ao feudalismo em decadência. Entretanto, a avareza do rei não era a única causa das desditas do povo inglês, a concentração de terras, das riquezas públicas entre os nobres e o clero, a opressão e a vassalagem, juntas, distribuíam todo tipo de sofrimento entre os desvalidos do continente europeu. De outro lado, o comércio e a indústria da Inglaterra não tinham muita expansão antes das descobertas de Vasco da Gama e Colombo. E assim, as gerações se sucediam sem finalidade, sem trabalho e sem pão. A agricultura estava em ruínas desde que a nascente indústria da lã, prometendo lucros espantosos, fez com que terras imensas fossem transformadas em pastagens para carneiros. Diante desse panorama social, More investiu contra todas essas injustiças em que se encontrava mergulhada a sociedade européia no alvorecer da modernidade. Thomas More, além de elaborar uma sátira a todas as instituições da época, imaginou uma sociedade ideal, sem propriedade privada, com absoluta comunidade de bens e do solo, sem antagonismos entre a cidade e o campo, sem trabalho assalariado, sem gastos supérfluos e luxos excessivos, com um Estado cujas funções era promover a produção do necessário para a vida da população, enfim, o autor pensou nas possibilidades de uma quimera, mesmo sem chances de efetivá-la, essa obra ficou na história do socialismo, como a primeira tentativa teórica da edificação de uma sociedade baseada na distribuição comuns dos bens sociais.
Todo esse metabolismo social, cujas idéias procuravam apaziguar os espíritos incomodados pelas crescentes desigualdades que assolavam a população quinhentista, instigou a procura por um lugar de fuga das mazelas que assolaram o velho continente. Diante disso, Espanha e Portugal empreenderam-se nos grandes projetos de navegação que culminaram com as conquistas territoriais noutros continentes.
Desde a chegada dos portugueses nas terras brasileiras, até os nossos dias, as qualidades paradisíacas do país têm sido motivos para atrair povos de todos os cantos do mundo, na esperança de encontrarem, nas terras tropicais, o paraíso perdido, onde melhor possam viver. A história registra diversos elogios feitos pelos viajantes quinhentistas, ficando o destaque para Pero Vaz de Caminha, que, em sua missiva dirigida à coroa portuguesa, relatava os encantos da nova terra. Outra carta elogiosa ao Novo Mundo foi a de Américo Vespúcio, dirigida a Francisco de Medici. Um outro entusiasmado com a terra brasileira foi Gandavo, que afirmava ser a província de Santa Cruz a melhor para a vida do homem por ser de bons ares e de terras fertilíssimas. Assim prosseguem outros cronistas, noutras épocas; cada um à sua maneira, tecendo o discurso laudativo sobre a complacência da natureza em criar lugares tão belos e generosos à vida como os do novo país.
Essa visão encantada dos viajantes sobre a dádiva da natureza para com as terras brasileiras seduziu não somente os portugueses que colonizaram o país, mas ainda outros povos da Europa. Para Holanda (1998) foi da cultura européia que se originou a sociedade brasileira, cujas características de convívio social, de instituições e idéias ainda preservam os resquícios culturais ibéricas.
É comum afirmar que se a sociedade brasileira concede privilégios em excesso, isso se deve em grande medida aos povos ibéricos, que antes já haviam desenvolvido o mesmo tipo de costume. Nesses países, o valor dos homens não poderia sofrer inferência dos demais; cada qual era produto de suas virtudes e de seus esforços Holanda, (1998) ressalta o personalismo como herança cultural ibérica que se espalhou por todos as organizações que iriam consolidar a ordem pública. A não presença de uma hierarquia organizada na sociedade brasileira, segundo o autor, abriu espaço para proliferarem os elementos anárquicos. E para conter esses ânimos anárquicos, o governo não se preocupou em unir os homens; ao contrário, recorreu aos mecanismos capazes de separá-los. Assim, Holanda lembra que os decretos e a imposição de normas rígidas e repressivas, como recursos para inibir as paixões dos indivíduos, tornaram-se práticas costumeiras dos governantes brasileiros. Por outro lado, para efetivar esses recursos governamentais de controle social, foi necessário recorrer à formação de um aparato miliciano, recrutado entre a população da colônia, para conter bandoleiros e rebeldes através do uso exagerado da força física. Desconheceu-se, porém, a capacidade astuciosa dos indivíduos para criar e sofisticar meios de burlar todas as formas de repressão provindas do governo. Assim se constituiu a sociedade brasileira, emoldurada pelos valores europeus, especialmente os traços culturais lusitanos e alguns matizes provenientes do continente africano mesclado com o que foi encontrado no território brasileiro. Entretanto, os aborígines da nova terra se encontravam constituídos numa sociedade cujos valores socioculturais eram bastante diferentes dos que estavam imbuídos os portugueses cuja sociedade se estruturava numa hierarquia fundamentada na rigidez feudal. Essas distinções fazem-se necessárias para mostrar que o enredo das desigualdades sociais que se iniciou no solo brasileiro já era do conhecimento dos colonizadores, portanto, as hierarquias sociais vieram com eles que, com o passar do tempo, tratou de implementa-la no imaginário cultural brasileiro.

A pobreza no contexto social brasileiro

A desigualdade social é um tema que nos leva a indagar como a coesão social pode se manter onde a convivência de indivíduos se apresenta conflitante no que se refere aos interesses existenciais de cada um, ou até mesmo de grupos sociais de uma dada sociedade. Diante desse dilema, percebe-se que o conceito de pobreza só faz sentido se percebido num universo relacional emoldurado por uma cultura que estabelece unidades de referências para identidade coletiva no interior de um dado grupamento social. O fenômeno da pobreza é percebido e valorizado no meio social através da justiça distributiva, ou seja, que se distribua de forma eqüitativa os bens produzidos e necessários entre todos do grupamento. Os fatores determinantes dos parâmetros de equanimidade, imprescindíveis na compreensão da pobreza e da coesão social, são processados na esfera cultural, ou seja, não são fenômenos exclusivos da economia, mas produzidos num contexto social complexo que envolve o conceito de politicidade. Nessa perspectiva a pobreza política coloca em xeque o entendimento da pobreza como simples carência material, para Demo (2003:36) a vulnerabilidade material é possivelmente uma das faces da pobreza, mas não a central. Noutros termos, as diferentes formas de desigualdades sociais não estão restritas às carências materiais, portanto, não basta uma distribuição dos bens econômicos sem que haja uma conquista do direito a desses bens, o que torna impossível desprezar os fatores que formam o animal político, único capaz de transformar-se a si mesmo.
A igualdade entre os homens é uma pretensão moderna. Antes, na antiguidade, as diferenças eram fixadas pela natureza, cada um nascia determinado para o que lhe esperava conforme os desígnios da sorte ou acaso. A sociedade era estruturada numa hierarquia rígida de poucas ou quase nenhuma mobilidade social, mesmo quando havia revoltas e rebeliões contra os senhores, essas não se davam para reivindicar a abolição do senhorio, mas por este ser mau, e assim perpetuava a estrutura hierarquizada da sociedade.
Mas a história é dinâmica, e a cada época, valores são criados, desfeitos e refeitos conforme os processos da evolução humana. Para Demo (2005) a desigualdade nas sociedades conhecidas até ao momento, parece ter sido sempre fenômeno histórico-estrutural. Vivemos numa sociedade absolutamente de desiguais e para muitos modernos, quando se fala de igualdade entre os homens, está se referindo à proposta dos revolucionários franceses que estabeleceram como parâmetros para a definição de igual/desigual o direito, especificamente os direitos civis, direitos políticos e direitos sociais. A partir de então, o debate em torno do problema das desigualdades sociais já não mais admitia especulações religiosas, metafísicas ou ainda aquelas condicionadas aos ditames da natureza. Os debates seguiram as pistas do racionalismo, da procura do esclarecimento através da fundamentação lógica, objetiva e ainda suscetível de demonstrações emoldurado no pensamento iluminista, que por sua vez concebia os homens como precursores do próprio destino.
O reconhecimento da igualdade como um valor, um ideal, faz dela algo incompleto, dinâmico, inatingível e as elites, em geral, têm papel crucial na conformação das políticas distributivas como afirma Reis (2004). Num trabalho dessa autora, sobre como as elites brasileiras percebem a desigualdade social, o fator educação é apontado como um recurso para assegurar a igualdade de oportunidades, no entendimento das elites, essa é uma forma para se definir a igualdade. Por outro lado, ao se referir à igualdade de resultados, como exemplo as diferentes modalidades de cotas, o estudo indica que as elites repudiam qualquer tipo de política social que focaliza a igualdade de resultados como diretriz.
A análise do survey organizado por Scalon (2004), apresenta uma profusão de dados sobre os diferentes fatores percebidos pelas elites e demais brasileiros como determinantes das desigualdades; contudo, desses fatores referidos no questionário, o que mais apresentou convergência entre as duas partes pesquisadas foi o fator educação. Segundo Reis (2004), tanto as elites como os demais brasileiros pesquisados apontaram a educação como ferramenta de oportunidades de emprego ou trabalho, não como mecanismo de conscientização política, que tornaria os excluídos aptos a reivindicar sua inclusão no sistema. A educação é percebida pelo brasileiro como capital humano, facilitador da mobilidade social, contrariando portanto, a visão entre as elites pesquisadas em Bangladesh[4] que apontaram a educação, principalmente como mecanismo de poder e capital social.
Por outro lado, os pesquisados convergem quanto à responsabilidade do poder público em investir na educação. Para a elite, o investimento em educação é exclusividade do Estado, entende-se que este é o mais capaz e de melhores condições para efetivar uma educação de qualidade, mesmo com os recursos disponíveis. As elites percebem o problema da desigualdade, mas rejeitam qualquer tipo de reformas distributivas e ainda preconizam medidas patrocinadas pelo poder público para proporcionarem melhores condições de vida.
Outra questão levantada no questionário do survey se refere ao grau de perturbação que a desigualdade causa nas elites. As respostas indicam que tanto os problemas sociais em geral, quanto à desigualdade em particular, que penaliza não somente os da base social, mas todos os demais da sociedade, pois esses problemas trazem consigo insegurança, violência, criminalidade, pressão sobre os serviços públicos e deterioração dos espaços públicos em geral.
Apesar de pouca expressão, as elites relacionam o desenvolvimento econômico com a questão da desigualdade, ou seja, para elas a população bem-educada contribui para incremento da produtividade. Mas não apontam que a conscientização. através da educação, pode favorecer o surgimento de revoltas políticas como ameaça real, semelhante ao que havia sido pensado na Europa e que motivou a implementação dos programas de bem-estar.
A interpretação da desigualdade na sociedade brasileira, que persiste e tem resistido às tentativas das políticas públicas dos governos, é um dilema no cenário das ciências sociais. Para uns, que procuram combinar os fatores históricos e culturais como nutrientes dessa persistência, a desigualdade brasileira, por ser de ordem cultural, herdada dos seus antepassados coloniais, se firmou no imaginário da população de tal maneira, que anuvia os horizontes da transformação e abre espaço para ações, cujos resultados se tornam pífios em relação aos seus investimentos. Para outros, que seguem as pistas do plano capitalista, a desigualdade, por ser produzida no seio da sociedade produtora de mercadorias, deve ser discutida a partir de uma reestruturação das relações sociais de produção capitalista, ou seja, é necessário compreender como estão sendo efetivadas as relações de dominação, como elas se legitimam na organização capitalista para estabelecer a disciplina exigida no trabalho, abolir entre as classes subalternas a liberdade e autonomia para decidir o próprio destino e ainda tornar as restrições de sobrevivência em conjunto com a falta de oportunidades aceitas pelos que vivem do trabalho.
Considerações finais
Essa breve abordagem sobre a questão da pobreza no âmbito da sociedade brasileira procurou articular os fatores históricos arraigados no imaginário brasileiro e citados pelos estudiosos do problema como possível determinante da persistência e manutenção desses despropósitos de desigualdades, existentes no Brasil há tempos, com as análises decorrentes de uma pesquisa de atitudes e opinião sobre desigualdades no Brasil.
A consolidação do domínio português no Brasil se deu de forma morrinhenta e pastosa, mas suficientes para deixar as suas marcas nas diferentes instituições que compõem a sociedade brasileira. Nessa perspectiva analítica, os traços culturais lusitanos emolduraram não somente as formas de relacionamento que originou a cordialidade do povo brasileiro, como também foi decisivo para se estabelecer um domínio caracterizado por ser excludente, centralizador e excessivo no que permeia os interesses das elites constituídas no poder. Dessa forma, emerge-se uma sociedade com profundas desigualdades e ao mesmo tempo tolerante às injustiças em abundância. A análise da especificidade da pobreza brasileira, esboçada nesse trabalho, traz à luz alguns pontos em que há convergência perceptiva das elites com os demais brasileiros. O mais relevante destes diz respeito à educação, percebida como capital humano, instrumento de mobilidade social e não capital social. Não a percebem como processo de conscientização política.



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15. Pobreza e Desigualdade. Folha de São Paulo, São Paulo, quinta-feira, 01 de setembro de 2005. Editorial - Primeiro Caderno
[1] Pobrezas no plural, porque o conceito se estende à esfera política, cultural, educação e econômica.
[2] O último relatório da ONU, divulgado no final de agosto de 2005 em Nova York, aponta que somente a China, o campeão de crescimento na década de 90, já é um dos países mais desiguais do mundo, os 10% mais ricos na China ganham 18 vezes mais do que os 40% mais pobres. No Brasil, o campeão de desigualdade na América Latina segundo a ONU, essa proporção é de 32 vezes. Esses dados apontam que o problema da desigualdade não está restrito ao desenvolvimento econômico e a capacitação profissional por si não faz reduzir as desigualdades sociais.

[3] Holanda, Sergio Buarque; DaMatta, Roberto; Faoro, Raymundo
[4] Reis 2000